Com o tempo do Advento da Igreja inicia-se um novo Ano litúrgico. Este tempo está especialmente orientado a representar-nos a longa espera do Redentor prometido. Por isso conta com quatro semanas, em recordação dos quatro mil anos que a humanidade teve de esperar o libertador que a redimiria do pecado. É, pois, um tempo ordenado a preparar o mistério da Encarnação do Senhor, ou melhor dizendo, a preparar nossas almas para receber as graças contidas na Encarnação do Verbo de Deus.
Este mistério da Encarnação, segundo o sentir dos mais ilustres teólogos católicos, dividiu em dois grandes grupos todo o mundo criado, tanto o angélico como o humano. Por essa razão, mostraremos essa verdade com certo comedimento, para sabermos como dar à Natividade do Senhor e à conveniente preparação do Advento, a importância que realmente têm.
Três pontos aqui são dignos de consideração:
• em primeiro lugar, a revelação feita aos anjos do mistério da Encarnação;
• em seguida, a rebelião de muitos deles contra este mistério, por orgulho e inveja;
• finalmente, a ação do demônio para impedir a realização do mistério da Encarnação, ou pelo menos frustrá-lo em seus frutos de salvação para as almas.
1º Revelação do mistério da Encarnação aos anjos.
Deus, ao criar os anjos em suas variadíssimas espécies e ordenados em suas hierarquias e coros, elevou-os à ordem sobrenatural, adornando-os com as virtudes infusas e dons, de cuja ajuda deviam merecer o céu. Mas a revelação nos diz que nem todos os anjos o mereceram.
“Houve uma batalha no céu. Miguel e seus anjos tiveram de combater o Dragão. O Dragão e seus anjos travaram combate” (Ap 12,7).
Que combate é este? Sendo os anjos espíritos puros, não poderia tratar-se de uma luta material, como a dos Titãs da mitologia; nem de uma batalha semelhante às da Terra, em que os adversários são atacados alternadamente com todos os tipos de armas e táticas. Seu combate, como seu ser, era puramente intelectual: trata-se de uma oposição entre puros espíritos, alguns dos quais aceitam uma verdade, e outros a rejeitam.
É um grande combate. Para dividir o céu em dois campos irreconciliáveis, e arrastar ao inferno a terça parte dos anjos, enquanto assegurava a bem-aventurança para as outras duas terças partes, a verdade em litígio deve ter sido um dogma fundamental, que os anjos estavam obrigados a aceitar sob pena de eterna condenação.
É uma batalha no céu: • não no céu das verdades naturais, pois nessa ordem todos os anjos são absolutamente perfeitos: eles possuem desde sua criação toda a ciência de que são naturalmente capazes; • nem tampouco no céu da visão beatífica, pois sendo a recompensa da prova, esse céu é a eterna morada da paz: aí as inteligências contemplam sem véu a essência divina, sem rivalidades ou possíveis divisões; • mas no céu da fé, isto é, no estado sobrenatural em que Deus os colocara, com uma prova para merecer a glória.
Para ser meritória, a aceitação dessa verdade devia ser cara. No campo da fé, duas grandes verdades se erguem como seus pilares: • a primeira, que Deus existe: o que inclui tudo o que se refere a Deus, sua natureza e suas perfeições, e se resume no mistério da Santíssima Trindade; • e a segunda, que Deus é remunerador daqueles que o buscam: o que inclui tudo o que se refere à providência pela qual Deus conduz os anjos e homens à salvação, e resume-se no mistério da Encarnação.
Esses dois mistérios, Trindade e Encarnação, são de tal modo necessários para nossa fé e para a unidade dela, que devem ser sempre acreditados por todos. Pelos justos do Antigo e Novo Testamento. Portanto, também pelos anjos. O primeiro mistério, no entanto, não oferecia a mesma dificuldade para os anjos do que o segundo. Crer nos atributos e privilégios de Deus como tal, sabendo-se criaturas suas, era o mais razoável. Mas admitir, graças ao mistério da Encarnação, uma superioridade dos homens sobre as naturezas angélicas, parece ter sido isso o que repugnou a muitos espíritos celestes.
2º Rebelião de muitos anjos contra o mistério da Encarnação.
Então, foi isso o que aconteceu. Deus revelou aos anjos o magnífico mistério da Encarnação, em virtude da qual Ele próprio se tornaria homem, e d’Ele deveriam receber todos, tanto homens como anjos, a graça que os coroaria com a visão beatífica. A aceitação do reino de Cristo (e de sua Mãe) foi a condição estabelecida por Deus para que os anjos alcançassem a bem-aventurança. E foi aí que Lúcifer se rebelou.
“A proposição desta suprema felicidade, fez-se por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela adesão ao mistério da Encarnação? É provável, porque, como conceber que Nosso Senhor seja o Rei dos Anjos, sem que tenham eles consentido ao seu reino? É assim que todas as expressões da Sagrada Escritura são melhor compreendidas: “Rei do céu e da terra”, “Rei de todas as coisas”, “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra”, “Por sua própria essência e natureza lhe corresponde a dominação sobre todas as coisas” (festa de Cristo Rei). A carta de São Paulo aos Colossenses (I 15-20) é explícita no que diz respeito ao Reino de Nosso Senhor sobre os anjos” (Monsenhor Lefebvre).
Com efeito, Lúcifer, havia sido criado por Deus como o máximo grau hierárquico de Deus na criação. Ele percebeu que Deus havia imprimido na criação a regra de que todo ser inferior deveria ser governado pelo ser superior. Desta forma, toda a criação material deveria ser regida pela criação espiritual; e, entre os próprios anjos, os inferiores deveriam ser, por sua vez, governados pelos superiores. Lúcifer era o ápice de todo o mundo angélico e, como tal, era seu dever ser o Arcanjo preposto ao governo de todo o Universo. Todos os desígnios que Deus tinha sobre sua criação deveriam ser realizados por ele, que era sua principal criatura.
Grandíssima dignidade, certamente, da qual Lúcifer excessivamente envaideceu-se, pois a esta lei geral Deus poderia estabelecer alguma exceção para ele, como de fato o fez. O Senhor revelou a seus anjos o mistério da Encarnação redentora. Ele mesmo, o Criador, far-se-ia homem, isto é, Ele unir-se-ia hipostaticamente a uma natureza humana, na qual todos eles, espíritos, deveriam adorá-lo; e, graças a essa natureza humana, Ele mesmo seria o Mediador supremo entre Deus e os homens, o encarregado de levar toda a criação, até mesmo a criação angélica, a Deus. Deste homem-Deus os anjos deveriam receber um influxo de graça e de glória, sem o qual eles não poderiam alcançar o seu último fim. Ou eles aceitavam o reinado de Cristo sobre eles, e seriam salvos, ou soberbamente o rejeitavam, e se condenariam.
E foi isso o que aconteceu com os anjos rebeldes. Lúcifer deve ter “raciocinado” da seguinte forma: Senhor, tudo, desde os serafins ao verme, desenvolve-se em perfeita ordem e hierarquia, tão perfeita que ninguém deve tocá-la. Ninguém, nem mesmo Vós. Que é isso do milagre, isto é, a exceção, o capricho, a “desordem”? Que é isso de criar um homem e colocá-lo junto nada menos que a uma pessoa divina? Onde se viu uma coisa dessas? A mim, e não a um homem, toca conduzir a criação ao seu fim último, e isso em virtude das leis que Vós mesmo imprimistes na natureza das coisas. Que é isso de criar uma mulher que seja, horror! Mãe de Deus? Não! Non serviam! (Padre Castellani).
Assim, pois, como o que Deus a ele revelava pela fé não respondia à sua lógica, Lúcifer pretendeu alcançar o fim que Deus lhe designava, mas segundo seu próprio critério. Apresentou-se diante de todos os outros anjos como o mediador a quem eles deviam escolher, em vez de Cristo, o Verbo encarnado em uma natureza inferior a deles.
São Miguel se opôs a isso, e com ele os anjos fiéis, que não cederam à tentadora sugestão de Lúcifer. “Miguel e seus anjos lutaram contra o dragão”. O resultado desse combate foi a expulsão dos anjos prevaricadores do céu, isto é, da ordem da visão beatífica, que eles nunca mais possuirão, e do próprio céu da fé, que perderam por causa de sua rejeição e negação em aceitar a realeza do Verbo encarnado e de sua Mãe Santíssima.
3º O demônio tenta impedir o mistério ou pelo menos os frutos da Encarnação.
Podemos agora compreender o ódio que os demônios têm ao mistério da Encarnação e à realeza de nosso Senhor Jesus Cristo e de sua Mãe.
- Expulso do céu, por ódio contra Deus e por inveja do homem, o demônio, aproveitando-se da liberdade que Deus lhe concedia, apesar do seu estado de condenação, aplicou-se a impedir por todos os meios o mistério da Encarnação. É por isso que ele levou Adão e Eva ao pecado. Mas no próprio paraíso Deus anunciou-lhe, pela segunda vez, que o Verbo Encarnado sairia da mesma raça que ele presumia ter vencido.
- Ao chegar o tempo de cumprirem-se as profecias, o diabo tentou por todos os meios impedir que o Messias fosse reconhecido por seu povo, e até mesmo a própria obra da Redenção. Mas, apesar de todas as suas intrigas, essa obra se realizou.
- Desde então, o demônio dedica-se a contrariar pelo menos o mistério da Encarnação em seus admiráveis efeitos de salvação e redenção para as almas. Ele faz tudo o que pode contra Cristo, contra a sua Mãe Santíssima, contra a Igreja e a sociedade cristã. Constrói sua própria Cidade, contra a Cidade de Deus, presidindo todas as empresas que refreiam ou até destroem a ação da Igreja no mundo. Mediante as três concupiscências desordenadas que observa no homem, ele tenta escravizá-lo ao seu poder, separá-lo de Cristo, da graça, da virtude. É o mistério da iniquidade, que já está em ação desde os tempos dos apóstolos. São as duas bandeiras, os dois campos: “Quem não está comigo é contra mim”. Nisto resume-se teologicamente toda a história.
Conclusão
Pois bem, conhecendo estas coisas, devemos estar resolutamente ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo, ao lado do mistério de Cristo, ao lado do grande mistério da Encarnação redentora. Para isso, comecemos bem o tempo do Advento segundo a intenção da Igreja, preparando-nos para receber com dignidade a nosso Redentor.
Para este fim, procuremos ter mais oração (rosário em família, leitura piedosa, meditação) e menos diversão (internet, vídeos, filmes, passeios). Dediquemo-nos àquelas obras que tão bem-dispõem nossa alma ante o mistério da Encarnação, fazendo-nos desejar e esperar por nosso Redentor, assim como os justos do Antigo Testamento desejaram e esperaram.
Peçamos estas mesmas graças à Santíssima Virgem Maria.
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