Vidimus eum… despectum et novissimum virorum – “Vimo-Lo… feito um objeto de desprezo e o último dos homens” (Is 53, 3)
Sumário. Considera a grande maravilha que se viu um dia na terra: o Filho de Deus, feito homem por amor dos homens, foi desprezado por estes mesmos homens, como se fosse o mais vil de todos, e tratado como doido, bêbado, blasfemador e réu de mil mortes. Meu irmão, representemo-nos bem vivamente o nosso maltratado Senhor: demos-Lhe graças pelo muito que por nós sofreu, consolemo-Lo com nosso arrependimento das injúrias que Lhe fizemos, e digamos-Lhe que por seu amor queremos de hoje em diante suportar com resignação as dores, as humilhações e os desprezos.
I. Eis a grande maravilha que se viu um dia no mundo: o Filho de Deus, o Rei do céu, o Senhor do universo, foi desprezado como o mais vil de todos os homens. Afirma Santo Anselmo que Jesus Cristo quis ser desprezado e humilhado nesta terra a tal ponto, que os desprezos e as humilhações que sofreu não podiam ser maiores. – Foi tratado como homem de baixa condição: Não é Ele porventura filho de um carpinteiro? (1) Foi desprezado por causa da sua terra: Pode vir de Nazaré alguma coisa boa? (2) Foi tido por doido: Perdeu o juízo, porque o estais ouvindo? (3) Foi tido por glutão e amigo do vinho: Vejam o homem glutão, que bebe vinho (4). Por feiticeiro: É pelo poder do príncipe dos demônios que Ele expulsa os demônios (5). Por herege: Não dizemos nós bem que és samaritano? (6)
As maiores injúrias, porém, Lhe foram feitas durante a sua Paixão; e particularmente durante a noite em que foi preso pelos Judeus. Quando Jesus declarou ser Filho de Deus, o ímpio Caifás, tratando-O de blasfemo, disse aos demais sacerdotes: “Blasfemou: que necessidade temos agora de testemunhas? Vós mesmos ouvistes a blasfêmia. Que vos parece?” E eles responderam: “É réu de morte.” (7) Então, assim continua o Evangelista, cuspiram-Lhe na face, e o feriram a punhadas, e tratando-o como falso profeta, disseram: “Advinha, Cristo: quem é que te bateu?” (8)
Numa palavra, foi então que se realizou a profecia de Isaías: “Entreguei o meu corpo aos que me feriam, e minhas faces aos que me arrancavam os cabelos da barba; não virei o rosto aos que me afrontavam e cuspiam em mim.” (9) – No meio de tantas ignomínias que nosso Salvador sofreu naquela noite, sua dor foi ainda aumentada pela injúria que Lhe fez Pedro, seu discípulo, renegando-o três vezes, e jurando que nunca o tinha conhecido.
II. Almas devotas, vamos a visitar o nosso Salvador aflito naquele cárcere, onde se acha abandonado de todos, tendo por única companhia os seus inimigos, que porfiam em escarnecê-Lo. Agradeçamos-Lhe o muito que por nós sofreu com tamanha paciência, e consolemô-Lo com nosso pesar das injúrias que Lhe fizemos, visto que no passado nós também fomos do número daqueles que O desprezaram e pelo pecado negamos conhecê-Lo.
Ó meu amável Redentor, quisera morrer de dor ao pensar que amargurei tanto o vosso Coração que tanto me amou. Por piedade, esquecei os desgostos que Vos dei, e lançai sobre mim um olhar de amor, assim como o lançastes sobre Pedro depois da sua renegação; desde então até ao fim de sua vida ele nunca mais deixou de chorar o seu pecado. Ó grande Filho de Deus, ó amor infinito, Vós que sofrestes por esses mesmos homens que Vos odeiam e maltratam; Vós sois o objetivo da adoração dos anjos, a majestade infinita, e seria uma honra bem grande para os homens, se os admitísseis a beijar-Vos os pés. Mas, ah, céus, como é que naquela noite quisestes fazer-Vos ludibrio de uma multidão infame?
Ó meu desprezado Jesus, deixai-me ser desprezado por vosso amor. Como poderei recusar os desprezos, vendo que Vós, meu Deus, sofrestes tantos por meu amor? Ah, Jesus crucificado, fazei-Vos conhecer e fazei-Vos amar; fazei também que eu sempre tenha na mente a vossa Paixão. – Oh céus! Que pena não sofrerão os réprobos no inferno, vendo o muito que o Senhor sofreu para os salvar e que, não obstante isto, se quiseram perder! Meu Jesus, não permitais que eu seja do número daqueles infelizes. Não, nunca mais quero esquecer-me do amor que me mostrastes sofrendo por mim tantas penas e ignomínias. Ajudai-me a amar-Vos e a lembrar-me sempre do amor que me haveis tido. – Ó minha Mãe dolorosa, Maria, peço-vos a mesma graça.
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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 71-73)
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