Vamos agora à prática: vejamos o que temos a fazer para sermos verdadeiramente humildes, não de nome mas de fato.
1. Ter horror ao orgulho
Primeiro que tudo, devemos conceber um grande horror pelo orgulho, porque Deus, como acima vimos, resiste aos orgulhosos e priva-os das suas graças. Um padre, sobretudo para se conservar casto, necessita duma assistência particular de Deus; como pois, se for orgulhoso, poderá guardar a castidade, quando o Senhor lhe retirar o auxílio, em castigo do seu orgulho?
O orgulho, diz o Sábio, é o sinal duma ruína próxima. Por isso Sto. Agostinho chega a dizer que, de certo modo, é proveitoso aos orgulhosos caírem nalgum pecado manifesto, para que aprendam a humilhar-se e a desprezar- se a si próprios. Assim Davi caiu em adultério, por falta de humildade, como depois confessou nestes termos: Pequei antes de ser humilhado.
Diz S. Gregório que o orgulho produz a impudicícia; porque a carne precipita no inferno os que se deixam enfatuar pelo espírito de orgulho. Está no meio deles o espírito de fornicação… E a arrogância de Israel se ostenta no seu rosto. Perguntai a um impudico porque recai sempre nas mesmas torpezas: Respondebit arrogantia: responderá por ele o orgulho, apresentando-se como causa; porque o Senhor castiga a audácia presunçosa do orgulhoso, permitindo- lhe que se afunde nas suas baixezas. Como diz o Apóstolo, foi o castigo infligido outrora ao orgulho dos sábios do mundo: Por isso os entregou Deus aos desejos do seu coração, à impureza, para que desonrassem o seu próprio corpo. O demônio não teme os orgulhosos. Refere Cesário (Dial. l. 4. c. 5) que um dia um possesso, tendo sido levado a um mosteiro de Citeaux, o abade chamou para junto de si um jovem religioso, com grande fama de virtude, e disse ao demônio: Se este religioso te mandasse sair, ousarias tu resistir? — “Desse não tenho eu medo, porque é orgulhoso, respondeu o espírito maligno”. — S. José Calasâncio dizia que um padre orgulhoso é nas mãos do demônio como uma péla de jogar, que ele arremessa e faz cair onde lhe apraz.
Sempre os santos têm temido mais o orgulho e a vanglória que todo os males temporais. Conta Súrio (8 de jan. V. S. Sever.) que um santo homem, a quem os seus milagres atraíam a estima e veneração de todo o mundo, pediu ao Senhor que o tornasse possesso do demônio, para se pôr a salvo das freqüentes tentações de vanglória, que o assaltavam; foi ouvido, e permaneceu possesso durante cinco meses, passados os quais foi livre do espírito infernal, e ao mesmo tempo do espírito de vaidade que o atormentava. Neste intuito permite Deus que os próprios santos estejam expostos às tentações de impureza e, apesar das suas súplicas, persistam no combate. Foi o que aconteceu a S. Paulo, como ele escreveu: Para que a grandeza destas revelações me não fizesse orgulhar, foi-me dado o aguilhão da carne, um anjo de Satanás que me prega bofetadas. Por essa causa três vezes pedi a Deus que me livrasse dele; e respondeu-me: Basta-te a minha graça; porque a virtude aperfeiçoa-se na fraqueza. Assim, diz S. Jerônimo, foi dado a S. Paulo o aguilhão da carne, como despertador para o conservar na humildade. Donde S. Gregório conclui que, para se conservar a castidade em toda a sua integridade, é necessário confiá-la à guarda da humildade.
Façamos aqui uma reflexão: Para humilhar o orgulho do povo egípcio, mandou-lhe o Senhor como tormento, não ursos ou leões, mas rãs. Que quer isto significar? Que algumas vezes permite Deus que sejamos atormentados por certas palavras insignificantes que ouvimos, por pequenas aversões, por coisas de nada, para que reconheçamos a nossa miséria e nos humilhemos.
2. Não se gloriar do bem praticado
Em segundo lugar é necessário que estejamos prevenidos contra a vaidade, por qualquer bem de que sejamos instrumentos, — nós principalmente que nos achamos erguidos à sublime dignidade do sacerdócio. Como são altos os nossos ministérios! Foi-nos confiada a augusta função de oferecer a Deus o seu próprio Filho. Como diz S. Paulo, foi-nos conferida a missão de reconciliar os pecadores com Deus, pela pregação e administração dos sacramentos.
Somos os embaixadores e vigários de Jesus Cristo, órgãos de Espírito Santo. São as mais altas montanhas, diz S. Jerônimo, que estão mais expostas aos ventos impetuosos; assim, quanto mais sublime é o nosso ministério, tanto mais sujeitos estamos aos assaltos da vanglória. Todos nos estimam, e nos olham como sábios e santos; facilmente se perturba a cabeça dos que estão em grandes alturas. Quantos padres, por falta de humildade, caíram no precipício! Montano chegou a fazer milagres, e depois a ambição fez dele um heresiarca. Taciano compôs muitos e belos escritos contra os idólatras, e o orgulho fê-lo cair também na heresia. O irmão Justino, franciscano, foi precipitado pelo orgulho, dos mais altos graus da contemplação, na apostasia, e morreu como réprobro. Na Vida de S. Palemon se lê que um monge, caminhando sobre carvões ardentes se gloriava e dizia: “Qual de vós pode caminhar sobre brasas, sem se queimar?” S. Palemon repreendeu-o, mas o desgraçado encheu-se de orgulho, caiu num pecado e morreu em mau estado. Dominado pelo orgulho, o homem espiritual é o mais culpado de todos os bandidos, porque o que ele arrebata não são bens de terra, é a glória do Céu. S. Francisco tinha o costume de fazer esta súplica: “Senhor! guardai vós mesmo os bens que me derdes; de contrário, eu vo-los roubaria”. Tal é a oração que também nós, os padres devemos fazer. Digamos sempre com S. Paulo: Tudo quanto sou, à graça de Deus o devo. De fato, segundo o mesmo Apóstolo, somos incapazes, não só de boas obras, mas até de termos de nós mesmos um bom pensamento. Daí a advertência que o Senhor nos faz:
Uma vez cumprido o que vos é prescrito, dizei: Somos servos inúteis; só fizemos o que era do nosso dever. Que podem aproveitar a Deus todas as nossas obras? que necessidade pode ele ter dos nossos bens? Sois vós o meu Deus, dizia Davi, não careceis dos meus bens. Em Jó lê-se: Se fizerdes o bem, o que é que lhe dais? Que dádiva podeis oferecer a Deus, que o torne mais rico? Somos ainda servos inúteis, porque tudo quanto fazemos nada é, para um Deus que merece um amor infinito e tanto sofreu por nosso amor. Razão por que o Apóstolo dizia de si mesmo: Se pregar o Evangelho, não tenho que me gloriar disso, porque é dever meu fazê-lo43. Por dever e também por gratidão estamos obrigados a fazer por Deus o que pudermos, e tanto mais que tudo o que fazemos é mais obra sua do que nossa. “Quem não mofaria das nuvens, se elas se gloriassem da chuva que nos dão?” É S. Bernardo quem assim fala, e acrescenta que nas obras dos santos os louvores devem ir menos para os que as fazem, do que para Deus, que se serve deles para as fazer. No mesmo sentido diz Sto. Agostinho, dirigindo-se a Deus: Se algum bem há, grande ou pequeno, é de vós que ele promana; da nossa parte só há mal. E noutro lugar: Quem vos apresentar como seus alguns merecimentos, que vos apresentará senão os vossos dons?
Assim, quando fazemos algum bem, devemos dizer ao Senhor: O que das vossas mãos temos recebido, é o que vos retribuímos. Quando Sta. Teresa fazia ou via fazer alguma obra boa, louvava a Deus, dizendo que dele derivava todo o bem. Dali esta advertência de Sto. Agostinho, — que, se a humildade não caminhar na vanguarda, tudo quanto fizermos de bem se tornará presa do orgulho. Está o orgulho como de emboscada para fazer perecer as nossas boas obras. É o que fazia dizer a S. José Calasâncio: quanto mais Deus nos favorece com graças particulares, tanto mais nos devemos humilhar, se não queremos perder tudo.
Por um pouco de estima própria se compromete tudo. Multiplicar atos de virtude, sem a humildade, é o mesmo que lançar poeira ao vento, diz S. Gregório. E Tritêmio ajunta: Se desprezais os outros, tornais-vos piores que todos.
Nunca os santos se gloriam das suas vantagens, antes procuram fazer conhecer aos outros o que pode redundar em confusão sua. O Pe. Vilanova, da Companhia de Jesus, não tinha nenhuma repugnância em dizer a toda agente que o seu irmão era um pobre artista. O Pe. Sacchini, da mesma Companhia, encontrando em público seu pai, que era um pobre almocreve, correu logo a abraçá-lo, exclamando: “Ó! eis o meu pai!” Cuidemos de ler as Vidas dos santos, e perderemos o orgulho: nelas encontramos atos heróicos, e cuja vista coraremos de tão pouco havermos feito.
3. Manter-se na desconfiança de si mesmo
Em terceiro lugar, é necessário que vivamos numa contínua desconfiança de nós mesmos. Se Deus nos não assistir, não poderemos conservar-nos na sua graça: Se Deus não guardar a cidade, debalde vigiará o que a guarda.
Há santos que, com pouca ciência, converteram povos inteiros. Santo Inácio de Loyola fazia em Roma discursos familiares, e até cheios de expressões impróprias; apesar disso, como eram palavras que saíam dum coração humilde e abrasado do amor de Deus, produziam um tal fruto, que os ouvintes iam logo confessar-se com tantas lágrimas que mal podiam falar.
Pelo contrário, há sábios que pregam e, com toda a sua ciência e eloqüência, não convertem uma só alma. É sobre eles que recai esta palavra de Oséas: Dá-lhes um seio estéril e peitos sem leite. Inchados com o seu saber, tais pregadores são mães estéreis, mães apenas de nome e sem filhos. E, se os filhos dos outros vem pedir-lhes leite, morrerão à míngua, porque os orgulhosos só estão cheios de vento e fumo; só têm a ciência que incha5 Tal a desgraça a que os sábios estão expostos. É difícil, como escrevia o cardeal Belarmino a seu sobrinho, que um sábio seja muito humilde, que não despreze os outros, que não critique as suas ações; que não se apegue ao seu próprio juízo, e se sujeite de boa vontade ao pensar dos outros e às suas correções.
Sem dúvida, quem prega não deve falar ao acaso; é necessário que tenha meditado e estudado; mas, depois de termos preparado o nosso discurso, e depois de o pronunciarmos com clareza e facilidade, devemos dizer: Servi inutiles sumus. O fruto dele não devemos esperá-lo do nosso trabalho, mas da graça de Deus. Com efeito, que proporção pode haver entre as nossas palavras e a conversão dos pecadores? Poderá gloriar-se o machado, em detrimento de quem se serve dele?Terá direito a dizer-lhe: Fui eu que cortei esta árvore; não foste tu? Somos como bocados de ferro incapazes de nos movermos, se o próprio Deus nos não imprimir o movimento. Disse o divino Mestre: Sem mim, nada podeis; o que Sto. Agostinho comenta assim: Não diz: Sem mim pouco podeis; mas diz: Nada podeis. E de si mesmo diz o Apóstolo: Por nós mesmos, nem um bom pensamento podemos formas. Se nem um bom pensamento podemos ter, quanto menos fazer uma boa obra! Nem o que planta, nem o que rega é coisa alguma, só é tudo Deus, que dá o crescimento. Não são o pregador e o confessor que por suas palavras fazem crescer as almas na virtude; é Deus quem faz tudo. Donde S. João Crisóstomo conclui: Reconheçamos a nossa inutilidade, para que nos tornemos úteis. Assim, quando nos louvarem, devolvamos logo a honra para Deus, único a quem ela pertence e digamos: Só a Deus a honra e a glória! E, quando a obediência nos impuser algum cargo, ou mandar alguma ação, não nos deixemos ir à desconfiança, considerando a nossa incapacidade; confiemos em Deus que, falando-nos pela boca do superior nos diz: Eu estarei na vossa boca.
O Apóstolo dizia: De bom grado me gloriarei nas minhas enfermidades, para que a virtude de Jesus Cristo habite em mim. É o que nós devemos também dizer: devemos gloriar-nos no conhecimento da nossa fraqueza, para adquirirmos a virtude de Jesus Cristo, a santa humildade. Ó! que grandes coisas podem levar a cabo os humildes! Nada lhes é difícil, diz S. Leão. De fato, os humildes, confiando em Deus, operam com o braço de Deus e conseguem quanto querem. Os que operam no Senhor crescerão em força. S. José Calasâncio dizia: “Quem quer que Deus se sirva dele para grandes coisas, deve procurar ser o mais humilde de todos”. Só ao humilde pertence dizer: Posso tudo naquele que me conforta. Esse, à vista duma empresa difícil, não perde a coragem, antes diz confiado: Com o auxílio de Deus faremos grandes coisas. Para converter o mundo, não quis Jesus Cristo escolher homens poderosos e sábios, mas pescadores pobres e ignorantes, porque eram humildes e não confiavam nas suas próprias forças: Escolheu Deus as coisas fracas do mundo, para confundir os fortes… para que nenhuma carne se glorie na sua presença.
Não nos deve lançar no desalento a consideração dos nossos defeitos.
Por dolorosa que seja a facilidade com que recaímos nas mesmas faltas, apesar das resoluções tomadas e das promessas que fazemos a Deus, não nos abandonemos à desconfiança, como o demônio nos insinua, para nos precipitar em pecados mais graves. Então mais que nunca devemos avivar a nossa confiança em Deus, servindo-nos dos próprios defeitos para mais confiarmos na misericórdia divina, conforme a palavra do Apóstolo: Todas as coisas concorrem para o nosso bem. A Glosa acrescenta: “Até os nossos pecados”. Por vezes permite o Senhor que se caia, ou se recaia em certa falta, para que se aprenda a não confiar nas próprias forças, mas sim no socorro divino. Era o que fazia dizer a Davi: Senhor, permitiste as minhas quedas para meu bem.
4. Aceitar as humilhações
Em quarto lugar, para adquirir a humildade, é necessário acima de tudo que aceitemos as humilhações, que nos advierem, ou de Deus ou dos homens, dizendo então com sinceridade: Tenho pecado, sou verdadeiramente culpado, e não tenho sido castigado como merecia. Pessoas há, nota S. Gregório, que se dizem pecadoras e dignas de todo o desprezo, mas não se crêem tais; porque apenas são desprezadas ou repreendidas logo se irritam.
São muitos os que têm as aparências da humildade, diz igualmente Sto. Ambrósio, mas sem terem dela a realidade73. Fala Cassiano74 dum certo monge que protestava em altas vozes que era um grande pecador, indigno de permanecer sobre a terra. Na mesma ocasião foi repreendido duma falta considerável pelo abade Serapion: era de andar ocioso pelas celas dos outros, em vez de estar na sua, conforme o preceito da regra. Mas logo esse monge se perturbou, dando sinais exteriores de sua agitação. Então lhe disse o abade: “Como é isso, meu filho! Acabaste de te declarares digno de todos os opróbrios, e dás-te por magoado com a advertência caridosa que te fiz?” O mesmo acontece a muitos que desejariam ser tidos por humildes, mas que não querem sofrer nenhuma humilhação. Homem há, diz o Sábio, que se humilha com vistas humanas, mas tem o coração cheio de malícia. Procurar ser louvado pela sua humildade, dizia S. Bernardo, não é efeito, mas ruína da humildade. É isso alimentar o orgulho com a ambição de ser humilde. Quem é verdadeiramente humilde, não contente com ter de si mesmo uma baixa idéia, quer ainda que os outros a tenham também. É humilde, diz S. Bernardo, quem muda a humilhação em humildade. Quer isto dizer que o homem verdadeiramente humilde, ao receber desprezos, se humilha ainda mais, dizendo que bem os mereceu.
Pensemos enfim que, se não formos humildes, não só não faremos nenhum bem, mas nem mesmo chegaremos a salvar-nos: Se não vos converterdes, e não vos tornardes como pequeninos, não entrareis no reino dos céus. É necessário portanto, para entrarmos no Céu, fazermo-nos como criancinhas, não pela idade, mas pela humildade. Segundo S. Gregório, assim como o orgulho é um sinal da reprovação, a humildade é um sinal de predestinação. E S. Tiago nos dá estes aviso: Resiste Deus aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes. Para os orgulhosos fecha o Senhor a sua mão e retém as suas graças; mas abre-as para os humildes. — Sê humilde, diz o mesmo Eclesiástico, e espera da mão de Deus todas as graças que desejares. E o nosso Salvador diz: Na verdade, na verdade vos digo, se o grão de trigo não cair na terra e não morrer nela, permanecerá só e estéril; mas se morrer produzirá muito fruto. O padre que morre ao orgulho, há de fazer muito fruto; o que não morre a si mesmo, o que é sensível aos desprezos, ou confia nos seus talentos, ipsum solum manet, esse permanecerá só, e nenhum fruto produzirá, nem para si, nem para os outros.
A Selva – Sto Afonso de Ligório
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