Exacerbavit Dominum peccator: secundum multitudinem irae suae non quaeret – “O pecador irritou ao Senhor: não se importa da grandeza de sua indignação” (Sl 9, 24)
Sumário. Não há dissabor maior do que ver-se pago com ingratidão por uma pessoa amada e beneficiada. Daí infere quanto deve estar amargurado o Coração sensibilíssimo de Jesus, que, não obstante os imensos e contínuos benefícios concedidos aos homens, é tão vilmente ultrajado pela maior parte deles, especialmente neste tempo de carnaval. Jesus não pode morrer; mas, se o pudesse, havia de morrer só de tristeza. Procuremos nós ao menos desagravá-Lo um pouco com os nossos obséquios.
I. O pecador injuria a Deus, desonra-O e por isso amargura-O sumamente. Não há dissabor mais sensível do que ver-se pago com ingratidão por uma pessoa amada e beneficiada. A quem ofende o pecador? Injuria um Deus, que o criou e amou a ponto de dar por amor dele o sangue e a vida. Cometendo um pecado mortal, bane esse Deus de seu coração.
Que mágoa não sentirias, se recebesses injúria grave de uma pessoa a quem tivesses feito bem? É esta a mágoa que causaste a teu Deus, que quis morrer para te salvar. Com razão o Senhor convida o céu e a terra, para de alguma sorte compartilharem com ele a dor que lhe causa a ingratidão dos pecadores: Ouvi, céus, e tu, ó terra, escuta: Criei uns filhos e engrandeci-os; porém, eles me desprezaram. ― Ipsi autem spreverunt me (1). ― Numa palavra, os pecadores, com o pecado, afligem o coração de Deus: Exacerbavit Dominum peccator. Deus não está sujeito à dor, mas, se a pudesse sofrer, um só pecado mortal bastaria para O fazer morrer de tristeza, porque Lhe causaria uma tristeza infinita. Assim, o pecado, no dizer de São Bernardo, por sua natureza é o destruidor de Deus: Peccatum, quantum in se est, Deum perimit.
Quando o homem comete um pecado mortal, dá, por assim dizer, veneno a Deus, faz o que está em si, para tirar-lhe a vida. Segundo a expressão de São Paulo, renova de certo modo a crucifixão e as ignomínias de Jesus e calca-O aos pés, pois que despreza tudo o que Jesus Cristo fez e sofreu para tirar o pecado do mundo: Qui filium Dei conculcaverit (2). Eis porque a vida do Redentor foi tão amargurada e penosa: tinha sempre diante dos olhos os nossos pecados.
II. Se um só pecado basta para afligir o coração de Deus, considera quanto deverá ficar amargurado particularmente no tempo de carnaval, quando se comete um sem-número de pecados. ― Santa Margarida Alacoque, para consolar um pouco o seu divino Esposo de tantas amarguras, alcançara de Deus que cada ano no carnaval lhe sobreviessem dores acerbíssimas, que soíam* durar até a quarta-feira de Cinzas, dia em que parecia reduzida aos extremos. Dando conta desta graça assinalada a seu diretor, a Santa exprime-se assim: “Esses dias são para mim um tempo de tamanho sofrimento, que não posso contemplar senão o meu Jesus sofredor, compadecendo-me das aflições de seu sacratíssimo Coração”.
Meu irmão, se não tens suficiente ânimo para imitar aquela amantíssima esposa de Jesus, ao menos, já que agora consideraste a malícia do pecado, afasta-te no futuro bem longe dele. E nestes dias de desenfreada libertinagem, não percas de vista as seguintes belas palavras de Santo Agostinho: “Os gentios“, diz ele (e o mesmo fazem os maus cristãos), “regozijam-se com gritos de alegria, mas vós alegrai-vos com a palavra de Deus; eles correm aos espetáculos, vós procurai apressadamente as igrejas; eles embriagam-se, mas vós, sede sóbrios e temperantes“.
Se porventura em outros tempos cometeste alguma culpa grave e assim afligiste o teu Deus tão amável, dize-Lhe agora com coração contrito e amoroso: † “Meu amável Jesus, para mostrar-Vos minha gratidão e para reparar as minhas infidelidades, dou-Vos o meu coração e consagro-me inteiramente a Vós, e com Vosso auxílio proponho não pecar mais” (3). † Ó doce Coração de Maria, sede a minha salvação.
Referências:
(1) Is 1, 2
(2) Hb 10, 29
(3) Indulg. de 100 dias
*soíam: do verbo soer = costumar
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 264-266)
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