sábado, 31 de dezembro de 2022

SEM DEDICAÇÃO NÃO HÁ AMOR

 


Jesus, vindo ao mundo, nada ensinou de mais amável do que a dedicação. Esta pequena flor - podemos chamá-la assim? - nasceu no Gólgota, aos pés da Cruz, no solo regado com o sangue de Cristo. Daí por diante, nunca mais desapareceu da terra.

Os amigos de Jesus cultivam-na carinhosamente. Conhecem o terreno onde se dá bem e a seiva de que se nutre. Sabem que evita o clima glacial do egoísmo e que se compraz nas quentes regiões da caridade divina. Mergulham-na no amor de Jesus, que é o seu verdadeiro lugar, o seu canteiro predileto.

Amor e dedicação são duas flores numa só haste. Jesus transplantou-as das regiões celestes para o nosso solo ingrato. Criaram raízes, vicejaram, multiplicaram-se e foram bem recebidas nos jardins dos grandes e nos canteiros dos pobres.

Sob a influência do seu perfume, desabrocharam por toda a parte admiráveis virtudes: a abnegação, a humildade, o sacrifício, a mansidão, a compreensão mútua. A terra, anteriormente deserta, cobriu-se de creches, escolas, hospícios, asilos; povoou-se de irmãos e irmãs de caridade.

Não, não há dedicação sem amor, como não há amor sem dedicação. Nunca a flor da dedicação brotou em terras não cristãs. O joio, o insolente joio do egoísmo, devorava o solo pagão. A sociedade antiga, no apogeu da sua civilização, só engendrava monstros horrendos: a crueldade, a luxúria, a escravidão. Como já era tempo de que Jesus viesse ressuscitar esta pobre humanidade que jazia e se decompunha no túmulo! Como já tardava que Ele viesse ensinar-nos o amor e a dedicação!

(O dom de si, vida de abandono em Deus, pelo Pe. Joseph Schrijvers)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Procedimento da alma no tempo da prova

 


A alma não deve admirar-se por sofrer oposição, mesmo da parte de pessoas de bem. Deve persuardir-se de que esta miséria é uma consequência fatal da estreiteza do espírito humano e do egoísmo inerente ao coração do homem.

Se todos tivessem idéias amplas e elevadas, todos seriam pelo menos tolerantes e respeitariam o modo de ver e de proceder dos outros. Não condenariam tão facilmente as intenções e as atitudes alheias. Ninguém há tão indulgente como Deus para com os erros do espírito, os defeitos do caráter, as extravagâncias do humor, e mesmo para as culpas morais, porque as vistas de Deus são infinitamente largas. Contenta-se com a boa vontade das Suas criaturas; por ela é que forma o Seu juízo.

O homem, limitado por natureza, não procede assim. Vê as aparências, julga pelo exterior, segue as próprias impressões, simpatias ou antipatias, reprova e quer corrigir tudo o que não se conforme com as suas idéias e modo de agir.

Devemos persuadir-se desta verdade: neste mundo, nunca encontraremos, fora do círculo dos que comungam com o nosso ideal, quem esteja disposto a dar-nos a sua aprovação e apoio sem reservas. Enquanto a alma não tiver enraizada esta convicção, não estará livre de penosas desilusões. É preciso conformar-se com esta inclinação da natureza humana. Deus assim o quis, para que a alma só O tenha como ponto de apoio seguro e só confie nEle e nos que por Ele lhe estão unidos.

Uma vez abandonada a Deus definitivamente, a estima dos homens torna-se-lhe indiferente. As suas críticas, violências, zombarias já não têm o poder de abalá-laNão foi para agradar-lhes nem para capitar-lhes a estima que optou por Deus.

Mesmo que o mundo inteiro se erguesse contra essa alma, em que poderia prejudicá-la? Ela não depende do mundo nem da sua aprovação. Sabe que a opinião dos homens nada vale diante de Deus. Se o universo inteiro se coligasse contra ela, não lhe poderia tirar o mérito de uma única das suas ações. O mundo só é poderoso contra aqueles que o temem. Aqueles que lhe afrontam as ameaças e gritos sabem-no impotente.

É bom repetir às vezes no fundo da alma: pode vir um dia em que serei abandonado pelos que me são caros, incompreendido pelos meus familiares ou colegas e condenado por alguns dos meus amigos. Não temerei essa situação, porque o Senhor me basta. Faço desde já o sacrifício da estima, afeição e confiança dos que estimo e procurarei somente não me afastar do que Deus quer de mim. Quanto mais repelido pelas criaturas, mais me chegarei a Jesus. Só Ele conhece a retidão das minhas intenções e a simplicidade do meu coração.

Este ato, frequentemente renovado na oração, desenvolve na alma um grande desprendimento, uma santa independência de toda a apreciação humana.

Deus, aliás, não deixa a alma indefesa. Quanto mais ela se abandona nEle, mas Ele a toma sob a Sua direção. Quanto menos se justifica diante dos outros, mais Deus Se ocupa da sua defesa e do seu progresso espiritual. Para os Seus desígnios, serve-se dos próprios inimigos. As incompreensões, violências ou astúcias contribuem para pôr em foco a inocência e integridade dessa alma. Basta-lhe entregar-se a Deus, confiar-Lhe os seus cuidados e interesses, limitando-se a amá-Lo, e eis que o céu inteiro se sente obrigado par com ela e se movimenta em sua defesa.

Senhor! O meu proceder nas adversidades e oposições é, pois, bem simples, basta lançar-me nos Vossos braços, confiar-Vos a minha defesa e amar-Vos. Seria mais fácil desaparecer o céu e a terra do que ser confundida uma alma que confia em Vós.

Desta maneira, a atitude da alma interior nunca muda. No tempo da abundância, das consolações, das luzes, da aprovação dos homens, só tem um ato: o dom integral de si mesmo a Jesus. No tempo das trevas, das misérias próprias, das críticas e adversidades, também só tem um mesmo gesto: dar-se a Deus por um ardente ato de amor. Eis todo o seu segredo, toda a sua sabedoria.

(O dom de si, vida de abandono em Deus, pelo Pe. Joseph Schrijvers)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

É mister apartar do mundo o coração, se queremos imitar o Coração de Jesus

 


Jesus. - Ai do mundo, filho! Ai do coração apegado às suas seduções e vaidades!

Não basta expulsar do coração a Satanás. Ainda é mister daí banir o mundo. Se nutrires no íntimo da alma amor ao mundo, de pouco valerá tudo o que fizeres para tua completa emenda.

O mundo, continuando a envenenar-te o coração, sem dúvida conseguirá perverter-te e por fim entregar-te ao poder do demônio. Que é o mundo senão o amor desordenado e perverso dos prazeres, riquezas e honras, pelo qual seus sequazes são seduzidos e se tornam corrompidos e corruptores?

Se queres saber o que deves pensar a seu respeito, considera como Eu o julguei. Passei distribuindo Meus benefícios a todos. Amei os inimigos que Me perseguiam. Pregado ao madeiro da Cruz, orei pelos que Me crucificaram. Pelo mundo, porém, não rezei.

O mundo procede do diabo e acha-se todo sob o poder do maligno. Não pode possuir o Meu Espírito, assim como a mentira não pode encerrar a verdade, nem a corrupção a pureza.

O mundo por si mesmo prova não só a realidade, mas também a necessidade do inferno.

Que há de comum entre o mundo e o Meu Coração, quando o mundo aberta e ocultamente favorece todos os vícios; meu Coração, porém, só aspira santidade?

O mundo, de acordo com Satanás, seu chefe, procura perder eternamente as almas, enquanto o Meu Coração deseja salvá-las todas. Não podes, por conseguinte, servir, ao mesmo tempo, ao mundo e a Mim. Pois, sendo amigo do mundo, tornas-te inimigo do Meu Coração.

Se seguires o mundo, com ele perecerás. Se aderires ao Meu Coração, irás para a vida eterna. Se expulsares do coração o mundo e os princípios mundanos, afim de oferecer-Me um coração puro, tua oblação ser-Me-á grata e honrosa, e reverterá em tua glória e mérito. Os anjos e santos aplaudirão o teu proceder e o mundo mesmo ver-se-á forçado a admirar tua heroica grandeza de alma.

Bem-aventurado, Meu filho, é o que aparta do mundo os seus afetos para consagrá-los só a Mim!

Que encontras no mundo para amá-lo? Tudo o que nela há é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e orgulho da vida, cujo fim é a morte e o inferno.

Com efeito, se amas o mundo ou as coisas que lhe pertencem, caís na eterna perdição. Que bem te fez o mundo para lhe consagrares teus afetos? Nunca te fez nem fará outra coisa senão o mal. Como podes, então, dar-lhe teu coração?

Não confies, Meu filho, nas lisonjas e aplausos do mundo, que só exprimem o secreto desejo de iludir-te e perder-teObedece, porém, aos convites do Meu Coração desejoso de livrar-te da eterna desgraça que o mundo te prepara. Se não abandonares o mundo, serás por ele abandonado, depois de haveres consumido as forças em servi-lo. Rirá com escárnio à hora da tua morte, e, quando mais necessitares de auxílio, ver-te-ás só e impotente. Reflete com frequência se, prestres a entrar na eternidade, desejarias ter seguido a Mim ou ao mundo.

Por isso, faze agora com mérito o que dontro modo sem mérito deverás fazer. Esforça-te por desapegar o coração do amor aos bens terrenos e triunfa do mundo por separação perfeita.

Confiança, filho, Eu venci o mundo. Se quiseres, vencê-lo-á também. Após a vitória, dar-te-ei morada aprazível em Meu Coração.

Discípulo. - Ó Senhor! Quão insensato foi o meu proceder! Quão perversa a minha vida! Seduzido de bom grado pela aparência de prazeres, lucros e honras, abandonei-Vos para escravizar-me ao mundo, Vosso inimigo. Deixando a fonte de todos os bens, desci ao pântano pestífero do mundo, Inebriei-me em suas águas envenenadas. Louco e insensato, despojei-me de tudo. Esquecido de Vós, meu Deus e meu tudo, entreguei-me inteiramente ao mundo, e profanei em seu serviço os Vossos dons: meus sentidos externos e minhas faculdades internas. Tornei-me em extremo culpado.

Minha alma foi repleta de males; minha vida aproximou-se do inferno.

Vossa cólera passou sobre mim e o terror perturbou-me, de modo que dia e noite me sentia infeliz (Sl 87, 4.17).

Ah! bom Jesus! Mesmo quando, impelido pelo excessivo pavor do Vosso julgamento e pelo medo do inferno, decidira viver bem, qual não foi minha fatal ilusão! Quão pernicioso não foi o meu erro! Dividi o meu coração entre Vós e o mundo, que, querendo servir juntamente a ambos. Que grave injúria Vos fiz, igualando-Vos ao mundo!

Assim, não consegui satisfazer nem a Vós nem ao mundo e sentia-me infelicíssimo, pois, não me contentando conVosco nem com o mundo, em nenhum dos dois encontrava a verdadeira felicidadeAgora, porém, que me abristes os olhos e me tocastes o coração, ó Senhor Jesus, só a Vós servirei. E desde há Vos consagro todo o meu coração para sempre.

Tirai, eu vo-lO rogo, desse meu coração todo amor do mundo. Transformai para mim em verdadeiro amargor toda a sua aparente doçura. Enchei o meu coração com a suavidade do Vosso amor, e o mundo inteiro com todas as suas vaidades tornar-se-á insípido para mim.

(A Jesus os corações ou imitação do Sagrado Coração de Jesus pelo Pe. Pedro Arnoudt S.J, editora Vozes LTDA Petrópolis, ano de edição 1941)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

O terço - Exame de consciência

 


Por ventura rezo o meu terço todos os dias, salvo impedimento absoluto? Os meus ócios, consagro-os eu, de tempos em tempos, à reza do terço?

Vemos às vezes no comboio pessoas que passam discretamente o terço. E eu sinto tal piedade? Como é que eu rezo o meu terço? Duma maneira negligente, de braços caídos, com os olhos distraídos?

Quanto tempo consagro ao terço?

Alguém prentederá talvez rezá-lo em oito minutos porque tem a língua muito solta. Mas um terço representa cinquenta Ave-Marias e cinto Pater, cinco Glórias. Supõe-se que há meditação. E tudo isso se vai fazer em oito minutos? ...

Não somente rezemos o terço, mas rezemo-lo bem.

Quando morrermos, que é que nos colocarão nas mãos? Os nossos dedos apalparam tantas coisas! De todas elas conservam só duas. O crucifixo se colocará simplesmente entre os nossos dedos. Mas enrolar-se-á o terço à volta delas como que prendendo-as com uma doce cadeia de amor, de sorte que, mortos, parecemos rezar ainda com fervor o nosso terço... Que bom será um dia para nós termos rezado fielmente o terço!

Batei e abrir-se-vos-á.
Terei eu batido à porta!
Terei gritado: "Mãe! Mãe! Socorro!"

Cinquenta vezes por dia terei tocado o sino da misericórdia de Maria.

Cinquenta vezes por dia, terei suplicado: "Rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte."

Mãe, lembrai-vos!

(Excertos do livro: Em face do dever - Volume II, pelo Pe. G. Hoornaet, S.J, traduzido por Pe. M. da Costa Maia, o original que serviu para esta tradução é o da 1ª Edição francesa que tem por título: "Face au Devoir", livraria Cruz, Braga, 1954)

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Sinal da Cruz - Terror para os inimigos infernais

 


"É com o Credo e com o Sinal da Cruz que é necessário correr o inimigo. Revestido destas armas, o Cristão sem dificuldade triunfará do antigo e soberbo tirano. A Cruz basta para desfazer todas as maquinações do espírito das trevas." (lib. de Symb., c. I. - Santo Agostinho)

"O Sinal da Cruz torna impotentes todos os artifícios da magia, ineficazes todos os encantos e ao abandono todos os ídolos. Por ele é moderado, abatido, extinto o fogo da voluptuosidade mais brutal; e a Alma, curvada para a terra, levanta-se para o Céu. Outrora os demônios enganavam os homens, tomando diferentes formas; postados à beira das fontes e dos rios, nos bosques e nos rochedos, surpreendiam por artificiosos enganos aos insensatos mortais. Mas, depois da vinda do Verbo Divino, basta o Sinal da Cruz para desmascará-los todos. Quer alguém a prova do que digo? Não tem mais que colocar-se no meio dos artifícios dos demônios, das imposturas dos oráculos e os embustes da magia e, feito o Sinal da Cruz, verá como por virtude dele fogem os demônios, calam-se os oráculos e se tornam impotentes todos os encantos e malefícios." (Lib. de Incarnat. Verb. - Santo Atanásio)

"O Sinal da Cruz é a armadura invencível dos Cristãos. Esta armadura que te não falte ó Soldado de Cristo, nem de dia nem de noite, nem um só instante, seja qual for o lugar em que te aches. Quer durmas, quer vigies, quer trabalhe, quer comas, quer bebas, quer navegues, quer atravesses rios, sempre andarás revestidos desta couraça. Orna e protege teus membros com este Sinal vencedor e nada te poderá fazer mal. Contra as setas do inimigo, não há escudo mais poderoso. A vista deste Sinal, trêmulas e aterradas fugirão as potências infernais." (S.Eph. de Panophia ot de poenitem, apud Gretzer p. 580,581 e 642. - São João Crisóstomo)

(Frases retiradas do livro: O Sinal da Cruz por Monsenhor Gaume, Protonotário Apostólico, livro que de Pio IX mereceu um “Breve” especial, primeira tradução brasileira cuidadosamente calcada sobre a 4ª edição francesa, 1950.)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A coragem

 



Ó Senhor, fazei de mim um soldado forte e corajoso no Vosso serviço.

Quando mais uma alma ama o Senhor, tanto mais corajosa será para empreender, por Seu amor, qualquer obra por mais árdua que seja. medo da fadiga, do sofrimento ou do perigo é o grande inimigo da fortalezaparalisa a alma e fá-la recuar perante o dever. A coragem, pelo contrário, impele-a, fazendo-a enfrentar seja o que for para se manter fiel a Deus. Assim, a coragem leva-a a abraçar mesmo a morte ou o martírio se for necessário para não faltar ao dever. O martírio é o ato supremo da fortaleza cristã, ato que não é pedido a todos e que, todavia, é bom não excluir da nossa perspectiva. Todo o cristão é, por assim dizer, um mártir em potência, no sentido de que a virtude da fortaleza, infundida nele no batismo e na confirmação, o torna capaz, em caso de necessidade, de sacrificar até a própria vida por amor de Deus. E se de fato nem todos os cristãos são chamados a dar ao Senhor este supremo testemunho, todos, porém devem viver como soldados valentes, habituando-se a nunca desertar – nem pouco nem muito – do próprio dever, por temor do sacrifício.

É verdade que a virtude da fortaleza não nos isenta do temor e da confusão que invadem a nossa natureza em presença dos sacrifícios, dos perigos e, sobretudo, em presença do perigo de morte; porém a fortaleza, como as demais virtudes, exercita-se com a vontade e, por conseqüência, é possível realizar atos de coragem apesar do temor que invade a parte sensível. Nestes casos a coragem cumpre uma dupla função: vencer o temor e enfrentar os deveres difíceis. Tal foi o supremo ato de fortaleza realizado por Jesus no Jardim das Oliveiras quando aceitou beber o amaríssimo cálice da Sua Paixão, apesar da angústia da Sua humanidade.

Associando-nos a este ato do Salvador, acharemos força para abraçar todos os deveres difíceis.

A graça pode tornar corajoso mesmo aquele que é tímido por natureza; contudo não julguemos que a graça atua sem a nossa colaboração. A virtude da fortaleza foi dada a todos os cristãos e neste sentido é virtude infusa; porém compete-nos a nós pô-la em ato por meio do exercício e neste sentido deve tornar-se virtude adquirida. Assim acontece, de resto, com todas as virtudes teologais infundidas na alma justamente com a graça; são capitais que só rendem se os soubermos empregar com boa vontade.

Assim como se chega a ser humilde fazendo atos de humildade, também se chega a ser forte e corajoso fazendo atos de coragem. Não está em nós evitar o temor sensível que provém do temperamento, e ao qual nos temos de sujeitar embora nos custe, mas está em nós impedir que ele se apodere da nossa vontade, paralisando os nossos movimentos. Precisamos, por isso, de reagir energicamente, empreendendo as nossas ações em nome de Deus, sem pararmos a discutir com o medo.

Muitas almas dizem: não tenho força para fazer tal sacrifício. Mas que façam esforço! Deus nunca recusa a primeira graça que dá a coragem de agir; depois disso o coração fortalece-se e vai-se de vitória em vitória” (Teresa do Menino Jesus, NV. 8- VIII). 

É mesmo assim: para chegar a ser corajoso é necessário decidir-se a agir, apesar dos desânimos e dos temores da natureza. Isto é particularmente indispensável naquelas circunstâncias em que, ou por fraqueza física ou por ausência do apoio sensível da graça, até as menores dificuldades nos parecem montanhas e tudo nos assusta. Se para agir estivéssemos à espera de sentir coragem, nunca faríamos nada. “Que importa que não tenha coragem – dizia a Santa de Lisieux a uma noviça – contanto que atue como se a tivesse?” (CL.). 

Os atos de coragem praticados sem sentir força são mais puros e mais sobrenaturais; mais puros porque não dão lugar a sentimentos de orgulho, mais sobrenaturais porque se baseiam unicamente nos recursos da graça e não nos da natureza. Pelo contrário, os atos de coragem realizados por disposição natural não passam muitas vezes de simples atos humanos e tornam-se facilmente uma armadilha para o amor próprio. Quem é forte por natureza deve aprender a não confiar na sua força, mas a apoiar-se em Deus e na Sua graça sem a qual a fortaleza humana é extrema fraqueza.

Colóquio – “Ó Senhor, Deus dos exércitos, que nos dissestes no Vosso Evangelho: ‘Não vim trazer a paz, mas a espada’, armai-me para a luta; ardo em desejo de combater pela Vossa glória, mas suplico-Vos que fortaleçais a minha coragem. Poderei então exclamar com o santo rei David: ‘Vós sois o meu único escudo, sois Vós, Senhor, que adestrais as minhas mãos para a guerra’.

Ó meu Jesus, combaterei por Vosso amor até ao fim da minha vida e a minha espada será o amor.

A minha impotência não me deve assustar; quando de manhã me sinto privada de coragem e de força para praticar a virtude, devo considerar isto como uma graça porque Vós me ensinais que é justamente o momento de pôr o machado à raiz da árvore, contando só com a Vossa ajuda. E que ganho no fim do dia!

Onde estaria o meu mérito se combatesse unicamente quando sinto coragem? Que importa se não a tenho, contanto que atue como se a tivesse? Ó Jesus fazei-me compreender bem que, se me sentisse muito fraca mesmo para levantar do chão um pedaço de fio e, todavia, o fizesse por Vosso amor, mereceria muito mais do que se praticasse uma ação importante num momento de fervor. Portanto, em vez de me entristecer, devo alegar-me vendo que Vós, deixando-me sentir a minha fraqueza, me proporcionais uma ocasião de Vos salvar um maior número de almas”. (cfr. Teresa do Menino Jesus, Orações; cart. 40; CL.).

(Intimidade divina, pelo Padre Gabriel de Santa Maria Madalena O.C.D; segunda edição, edições Carmelitas, 1967.)


terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Os recreios, os divertimentos e todas as coisas ordinárias da vida


Além das ações ordinárias que pertencem ao nosso estado e ao nosso gênero de vida, também os nossos recreios e passatempos devem ser santificados, afim de que Jesus possa colher constantemente no nosso coração uma abundante messe de glória e amor. Ai! quantas pessoas nas comunidades não perdem durante o tempo dos recreios o que ganharam pela observância da regra e pela oração! De sorte que, na vida religiosa, é mais fácil a mortificação que o recreio. 

Marianno Sozzini, religioso do Oratório de Roma, conta que um dos Padres do seu tempo costumava todos os dias, ao passar do refeitório para a sala do recreio, orar para obter os quatro principais dons do Espírito Santo, que são a caridade, a alegria, a paz e a paciência, pois são "necessários estes quatro dons para tornar o recreio geral e útil". 

Algumas pessoas familiarizaram-se de tal modo com esta prática da presença de Deus, que mesmo passeando ou conversando lhe dizem no fundo do seu coraçao, a cada passo que dão: "Por vós, por vós; propter te, propter te"  O mesmo fazem quando estão à mesa e a cada movimento que fazem ao tomar a refeição. Santa Maria Madalena de Pazzi recomendava às suas noviças que oferecessem pela glória de Deus até o pestanejar, até o menor movimento de seus membros; e prometia-lhes, se observassem esta prática, que iriam direitas ao céu depois da sua morte, sem passarem pelas chamas do purgatório. Afim de lhes incutir mais profundamente este hábito no coração, costumava surpreendê-las a cada uma por sua vez, quando se entregavam às suas ocupações, e perguntava-lhes com que intenção trabalhavam. Se alguma não respondia logo, a santa compreendia que essa empreendera a sua tarefa sem haver formado uma intenção, e a repreendia por haver perdido uma ocasião de merecer, e privado Deus duma satisfação. 

Notou-se na Vida de Gregório Lopez (e isso foi sem dúvida uma espécie de milagre), que durante três anos completos dissera a Deus em seu coração, cada vez que respirava, estas palavras: "Seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu." E este hábito ganhara nele tanta força que, se acaso acordava de noite, recomeçava imediatamente esta oração. Não podemos nós imitar tal exemplo, mas amaremos mais, a Deus sabendo que suscitou homens que assim praticaram. Bendita seja por todo o sempre a Santíssima Trindade, por todas as graças que tem espalhado sobre os anjos e no coração dos homens!

Há fiéis que desejam dar-se inteiramente a Deus, e que praticariam voluntariamente algumas destas austeridades que se lêem na vida dos Santos; mas a sua saúde é má ou delicada, ou não têm a coragem de fazer penitência; ou ainda, e este é o caso mais comum, faltam-lhes ao mesmo tempo a saúde e a coragem. Precisamos dum tratado da perfeição para uso dos valetudinários. As pessoas duma saúde delicada são ao mesmo tempo mais e menos capazes de trabalhar na glória de Deus do que aquelas, a quem uma doença grave retém no leito da dor. 

Vamos dar a esta proposição os esclarecimentos e explicações que ela pede. Acerca dos valetudinários, tomando-se esta palavra no sentido mais moderno, os livros espirituais quase todos guardam silêncio, se bem que o terceiro tratado da Santa Sophia do Padre Baker contém coisas, que perfeitamente se lhes poderiam aplicar. Parece que S. Bernardo escolhia intencionalmente sítios insalubres para estabelecer mosteiros, por considerar uma saúde fraca como poderoso auxiliar da vida contemplativa e dos exercícios interiores. Mas hoje a irritabilidade dos nervos, os reumatismos e a moleza da educação, substituem com vantagem o ar insalubre dum lugar palustre. Como quer que seja, poderá uma dessas enfermidades impedir um valetudinário de ser um santo, ou de praticar virtudes heróicas? Não. Se as pessoas desta categoria quizerem cumprir os seus deveres para consigo mesmas, encontrarão penitências que lhes não causarão sofrimentos corporais, que não sejam capazes de suportar, e que nenhuma influência terão nas suas enfermidades. 

E evidente que um escrupuloso emprego do nosso tempo é precisamente uma penitência deste gêneroPodemos prometer a Deus que nunca dissiparemos voluntariamente os momentos que nos dá, ocupando-os com coisas de nenhum mérito. Esta resolução não e certamente fácil de executar em nossos dias, e muitas vezes pesará como um jugo incômodo sobre a nossa liberdade natural. Se a observarmos, pois, fielmente, faremos uma excelente penitência, e ao mesmo tempo colheremos uma abundante messe para a glória da Deus, para os interesses de Jesus e para a salvação das almas. 

Mas não se deve concluir daqui que as recreações são defesas. Ninguém ignora a história de S. Carlos Borrorneu e da sua partida de xadrez. Enquanto outros falavam do que se apressariam a fazer se soubessem que morreriam dentro duma hora, o Santo disse que, pela sua parte, acabaria a sua partida de xadrez, pois a tinha começado somente para glória de Deus, e nada desejava tanto como ser chamado á presença do seu Juiz em meio de uma ação empreendida para Sua glória. E fácil merecer ao jogo, pois todos os recreios, por assim dizer, proporcionam ensejos de se praticar algumas virtudes. 

É possivel adquirir méritos na leitura dum romance insignificante, contanto que seja este o seu único ou o seu maior defeito (1) ; em primeiro lugar, porque é um dever; em certo modo, dar alguma folga ao espírito, o que se não pode encontrar senão numa ocupação interessante; depois, porque o contraste da ficção dessa ligeira narrativa com as graves verdades da fé, que nos preocupam, leva-nos a fazer mais dum ato da ação de graças pela fé e pelos outros favores, que temos recebido. 

1. Não falo senão do que é possivel, para assim dar a inteligência completa do meu pensamento. Contristar-me-ia o ser contado entre os que preconizam a leitura dos romances. O espírito do meu livro é tirar o maior bem possível daquilo que não é mau em si. 

Mas não é fácil merecer dissipando inutilmente um tempo precioso, andando daqui para ali, sem um fim determinado, suspirando por que as horas passem ligeiras, maldizendo tudo que nos rodeia, entregando-nos, enfim, a conversações tão frívolas quão pouco caridosas. A maior parte das pessoas piedosas não são tão escrupulosas quanto o deveriam ser no emprego do seu tempo. Contudo, se S. Carlos, como cremos, está um grau mais acima no céu, por causa da sua partida de xadrez, é bem deplorável que se percam tantas ocasiões de merecer e de fazer avançar os interesses de Jesus. 

A maior ou menor pontualidade que pomos no emprego do nosso tempo é como um termômetro que marca o grau de fervor do nosso amor

Se um operário forte e ativo obtivesse permissão para passar um determinado número de horas em uma mina de ouro donde a terra houvesse já sido tirada, e onde não houvesse mais nada a apanhar que o metal puro, não consideraria ele como insensato o homem que lhe propusesse suspender o seu trabalho, quando a fadiga o não obrigasse a isso? Pois é este precisamente o nosso caso a respeito das ações ordinárias da nossa vida e dos nossos recreios.

O trabalho verdadeiramente penoso para os tornar meritórios foi feito pelo nosso divino Salvador; as pedras e o lodo foi o que Lhe coube em sorte; para nós deixou só o ouro mais precioso. Mas as horas são contadas, apressemo-nos pois, a recolher o nosso tesouro, pois não sabemos o tempo que ainda nos restaAi! não conheceremos jamais o valor do tempo senão quando se nos escapar das mãos para nos deixar na eternidade. E então, ó doce Salvador, seremos conVosco ?



Santa Gertrudes disse um dia a Nosso Senhor que desejava edificar-Lhe uma arca espiritual, e perguntou-Lhe como se devia haver para isso. Eis a resposta que Ele lhe deu: 

"É opinião geralmente espalhada entre vós que a arca de Noé era formada de três andares, e que as aves ocupavam o mais alto, os homens o do meio e os animais a parte inferior. Toma pois essa arca por modelo e reparte os teus dias segundo esse sistema. Desde manhã até ao meio dia, Me oferecerás louvores e ações de graças em nome da Igreja universal, com os sentimentos do amor mais terno, por todos os benefícios que tenho espalhado sobre os homens desde o começo do mundo, e principalmente pela adorável misericórdia em virtude da qual, desde a aurora até ao meio dia, Me deixo oferecer ao Padre Eterno, no santo sacrifício da Missa, para salvação dos homens. Enquanto as pessoas do mundo, insensíveis aos Meus benefícios, se abandonam ao prazer e alegria, e na sua ingratidão Me esquecem, oferece-Me tu por elas contínuos louvores: assim figurarás deter os pássaros no seu vôo, e encerrá-los no andar superior da arca. Depois do meio dia até á noite cuida de praticares boas obras, em união com a intenção puríssima que animava todas as obras da Minha santa humanidade, a fim de compensares as negligências do resto do mundo: assim reunirás os homens na arca. Desde o anoitecer até ao amanhecer protesta, na amargura do teu coração, contra a impiedade com que os homens, não contentes de Me recusarem o seu reconhecimento pelo que tenho feito por eles, se esforçam em provocar a Minha cólera com toda a sorte de pecados: oferece-Me, pois, para obter o seu arrependimento, os sofrimentos e amarguras da Minha Paixão e morte, e assim ajuntarás os animais na parte inferior da arca." 
Quando Nosso Senhor traçava assim a Santa Gertrudes o plano dos exercícios do seu dia, sabia quais eram os seus trabalhos e ocupações: sabia que ela, por obediência à sua regra, devia com suas filhas espirituais ter todos os dias algum recreio e ocupar-se de todas as minudências do governo do seu mosteiro. 

Uma outra prática igualmente proveitosa consiste em fazer da solidão o que fazeis das vossas ocupações. Quando estais só ou acordais durante a noite, oferecei a vossa solidão em união com a de Jesus no sepulcro e no tabernáculo; e fazei isto para obter para vós e para os que amais, a graça duma boa morte:

- Para morrer na graça de Deus;
- para vos encontrardes, nessa última hora, cheios de méritos, a fim de mais glorificardes a Deus no céu ; 
-  para não deixardes a vida senão depois de haverdes contribuído para a salvação dum grande número de almas;
4º- para que não fique após de vós celebridade ou um nome prestigioso, mas imiteis Jesus, que morreu sem honras entre dois ladrões;
- para que não tenhais que passar pelas chamas do purgatório; 
- para deixardes uma abundância de satisfações de que não necessiteis, mas que vá aumentar o tesouro de que a Igreja tira as suas indulgências; 
- para que possais glorificar a Deus na terra, ainda depois da vossa morte, pela recordação das vossas boas obras, pelos conselhos salutares que houverdes dado, pelos livros de piedade que tenhais escrito, ou pelo fruto das vossas orações.

Pela prática da oblação, as circunstâncias mais ordinárias podem converter-se em ocasião de merecimento com tanto que estejamos em estado de graça. Cada um dos nossos atos meritórios é para Deus um aumento de glória, um verdadeiro progresso dos interesses de Jesus, e fonte de muitas graças para as almas de nossos irmãos, em razão da comunhão dos Santos. Ora aqui está outra maneira de aquirir merecimentos por ocasião das coisas mais ordinárias- é elevar-nos a Deus pela vista das criaturas. Esta prática é uma das que os santos seguiram mais geralmente com mais fervor. 

Lancicius nos diz :

"Quando saís de vossa casa e vedes as pessoas que param na rua para conversarem, orai para que não digam coisas inúteis de que um dia houvessem de dar contas. - Sentis o vento que sopra com violência, orai pelos que andam no mar. - Se passais perto duma taverna e ouvis o barulho dos que lá dentro bebem, orai para que não ofendam a Deus, e para que se confessem os que tiveram essa infelicidade." 
Tendo Santo Atanásio enviado ordem a S. Pambo para deixar o deserto e ir a Alexandria, o piedoso solitário, dirigindo-se aonde era chamado, encontrou nas ruas da cidade uma atriz na mais elegante semi-nudez. Vendo-a, começou a chorar. Perguntaram-lhe a razão das suas lágrimas e ele respondeu:

"Duas coisas me afligem profundamente: em primeiro lugar, a condenação eterna dessa mulher, e depois o ver que eu faço menos pela glória de Deus do que essa atriz para agradar a alguns libertinos."
Assim se serviu do pecado como de um escabelo para se elevar a Deus. Quando sentis a chuva bater nas vossas janelas, agradecei a Deus e formai interiormente o desejo de Lhe oferecer tantos atos de fé, de esperança, caridade, contrição, ações de graças de humildade, de adoração, de rogo, quantas as gotas que caíram durante a borrasca; implorai um aumento contínuo dos socorros da graça a fim de que vós e vossos irmãos possais sempre fazer as vossas ações com perfeição, e glorificar a Deus tanto quanto é dado fazê-lo ao poder humano.

Quando, ao passear ou viajar, passais por uma aldeia, vila ou cidade:

- Pedi a Deus, pelos merecimentos dos que habitam esse lugar, que tenha piedade de vós; 
2º- rendei-Lhe ações de graças por todas as bênçãos que derramou, derrama, ou derramará sobre essas habições; 
- recommendai-Lhe todas as necessidades desses habitantes e suplicai-Lhe que ouça as suas orações; 
- chorai os pecados que aí se têm cometidos;
- pedi a remissão deles;
-  recomendai a Deus as almas dos fiéis que aí se têm morrido.

Surius, na Vida de S. Fulgêncio, refere que tendo ido este Santo a Roma ao ver os palácios dos nobres exclamou: 

"Qual nao deve ser a beleza da Jerusalém celeste se Roma tanto resplandece na terra! E se neste mundo tantas honras são apanágio dos que só procuram a vaidade, qual não será a glória dos santos engolfados na contemplação da verdade!"
Lemos na Vida de S. Martinho de Tours que viajando um dia para visitar a sua diocese, se sentiu profundamente aflito à vista dum alcatraz que pescava, pois lhe representava ao vivo os meios de que o demônio se serve que para apanhar as almas. São Boaventura diz-nos que S. Francisco usava muito freqüentemente desta prática. E eis o que Ribadeneyra diz de Santo Inácio:

"Vimo-lo muitas vezes elevar-se das coisas mais pequenas a Deus, que é poderoso até nos menores objetos; a vista duma pequena planta, duma folha, dum fruto, ou dum pequeno inseto bastava para o transportar num momento às regiões celestes."

Monsenhor Strambi dá-nos os seguintes pormenores acerca do bem-aventurado Paulo da Cruz, fundador da Ordem dos Passionistas (Vitam page 137- Nota do blogue: hoje Santo). O Senhor recompensava as suas santas intenções e os seus piedosos desejos com as mais abundantes consolações espirituais, e nas suas viagens para visitar as casas da sua Ordem, fazia do recolhimento o doce alimento da sua alma. Um dia em que se dirigia ao ermo de Santo Euligio, voltou-se para o seu companheiro dizendo-lhe:

"De quem são estas terras?
"São de Gallese" lhe respondeu o companheiro. Mas Paulo, elevando a voz, perguntou de novo: 
"De quem são estas terras?"

Não compreendendo o seu companheiro o sentido da pergunta, o bom Padre, tendo dado mais alguns passos, voltou-se para ele com uma fisionomia radiante como o sol, e exclamou: 

"De quem são estas terras? Ah! tu não me compreendes; pertencem a Deus onipotente."


E ao dizer estas palavras, a impetuosidade do seu amor o ergueu e impeliu a alguma distância no caminho. Doutra vez que se dirigia de Renacina a Ceccano através da floresta de Fossanova, depois de haver visitado o mosteiro em que São Tomás de Aquino morrera, chegou a um sítio onde o bosque era mais espesso, e dirigindo-se repentinamente ao seu companheiro, exclamou:

"Oh! não ouves estas árvores e suas folhas, que te gritam de toda a parte: ama a Deus, ama a Deus!"

E inflamando-se cada vez mais no amor divino, tornando-se a sua fisionomia radiante, continuou em alta voz:

"Oh! como pode ser que não ames a Deus? Como pode ser que não ames a Deus?" E quando voltaram a entrar na estrada romana, dizia a todas as pessoas que encontrava: "Meu irmão, ame a Deus, ame a Deus; Ele merece tanto o seu amor! Não ouve como até as folhas das árvores lhe gritam que o ame? Ó amor divino, ó amor divino!"

E falava com tanta unção, que os viandantes não podiam reprimir as lágrimas. Além disto, dizem que tudo lhe servia para lhe recordar a idéia de Deus, e que imaginava que todas as criaturas tinham voz para gritar ao homem: "Ama Aquele que te criou!" Viam-no muitas vezes passear pelo campo, principalmente na primavera, e examinar com atenção todas as flores que encontrava, tocá-las com o seu bastão, e dizer-lhes: 

"Calai-vos, bem vos ouço! censurais-me pelo meu pouco amor a Deus. Calai-vos."

Tinha o costume de dizer aos seus religiosos que as flores os convidavam incessantemente a levantarem seus corações nos sentimentos de amor e adoração ao seu celeste Criador.

Como os gostos que levam cada qual á devoção variam até ao infinito, os meus leitores perdoarão o longo extrato que vai seguir-se, tirado da Vida do Padre Pedro Lefèvre, companheiro de Santo Inácio, por Orlandini. Este religioso possuia em grau supremo o dom de converter tudo em oração. 

Quando se aproximava de alguma cidade ou de qualquer povoação, tinha o costume de orar pelos seus habitantes, e pedia a Deus que fizesse com que o anjo encarregado da guarda daquele lugar, e os anjos da guarda de todos os que ali moravam desempenhassem as suas funções com uma atenção especial. Invocava também os santos Padroeiros dessas povações, e rogava-lhes que rendessem graças, pedissem perdão, ou obtivessem novos favores para os habitantes, e suprissem todas as negligências e omissões destes, a fim de que Deus não ficasse privado da glória que Lhe é devida. 

Quando arrendava uma casa ou mudava de habitação, a primeira coisa que fazia ao entrar era ir ajoelhar-se em todas as salas e compartimentos da nova casa, em todos os recantos em que podia penetrar, e pedir aí a Deus que afastasse daquella morada os espíritos malignos, os perigos e trabalhos. Na sua oração lembrava-se de todas as pessoas que até então houvessem vivido naquela mesma casa e das que nela viessem viver de futuro, e pedia com fervor que nenhum mal sucedesse ás suas almas. 

Punha tal cuidado em encontrar em todas as coisas um objeto de oração, que tendo ido ao palácio de certo príncipe para ouvir um sermão, que se pregava na capela, e sendo repelido por um porteiro que o não conhecia, não viu nesta afronta senão uma nova ocasião para orar. Um homem que tanto gostava da oração quando gozava saúde, não podia deixar de se entregar a ela com assiduidade quando doente. Retido, em Louvain, no leito em que o sofrimento o impedia de gozar o menor repouso, as suas penosas vigílias forneciam-lhe motivo de oração. Então mesmo que a sua cabeça enfraquecida mal podia suportar a violência do mal, não cessava de orar e de unir os seus sofrimentos à coroa de espinhos de Nosso Senhor, até que o amor que o consumia rebentava numa torrente de doces lágrimas. 

Entretinha esta oração incessante com a variedade das suas devoções. A vida de Jesus Cristo era o alimento principal da sua contemplação quotidiana. Pois aonde poderia a alma encontrar alimentação mais abundante, doçura mais apetecível? Não obstante, para entreter a sua piedade, inventou uma multidão de métodos de oração, que as suas leituras lhe sugeriam, bem como as doutrinas da qual estava imbuído, ou as inspirações do Espírito Santo. Mas preferia três desses métodos, que achava ao mesmo tempo tão úteis, suaves e fáceis, que recomendava aos confessores que os ensinassem aos seus penitentes. 

Em primeiro lugar, tinha uma grande confiança nas Ladainhas; repetia-as constantemente e as aplicava a todas as circunstâncias. Servia-se delas não só para pedir algum favor, que é o objeto ordinário das Ladainhas, mas para louvar a Deus, render-Lhe ações de graças, ou para todo o outro exercício da virtude de religião. Uma das suas práticas era penetrar na corte do céu, e lá, ao pé do trono da Santíssima Trindade, suplicava ao Pai que se regozijasse no Filho e no Espírito Santo; ao Filho que partilhasse esta alegria no seio do Pai e do Espírito Santo, e finalmente ao Espirito Santo que se regozijasse no Pai e no Filho. Com isto queria exprimir a felicidade que as três Pessoas divinas gozam umas nas outras, e que na linguagem da escola se chama complacência. 

Depois, suplicava à Rainha do céu que adorasse a Santíssima Trindade em seu nome, ou em nome de alguma outra pessoa, viva ou morta; e por outro lado conjurava à Santissima Trindade que abençoasse esta boa Mãe por todos os benefícios que por Suas mãos são espalhados na terra. Depois percorria os coros dos anjos e as ordens dos bem-aventurados, pedindo-lhes que oferecessem ações de graças e louvores, em seu nome 
ou no de outra pessoa, a Deus, à Santissima Virgem, ou em particular a alguns anjos e santos. 

segundo método que seguia nas suas orações consistia em percorrer todos os mistérios da vida e morte de Nosso Senhor, apropriá-los engenhosamente ao tempo e circunstâncias, e em seguida, em nome de cada um deles, invocava separadamente as três Pessoas da Santíssima Trindade e os espíritos celestes.

O seu terceiro método era percorrer um após outro os mandamentos de Deus e da Igreja, os artigos de fé, os sete pecados mortais e as virtudes contrárias: as obras de misericordia, os cinco sentidos corporais e as três faculdades da alma. A própria variedades destes assuntos sugeria-lhe afetos diversos; eram perdões a implorar, favores a pedir, ações de graças a render, não só por si ou por outras pessoas vivas, mas também pelos mortos. Suplicava a Deus que lhes remitisse o resto do que ainda lhe devessem à conta do primeiro mandamento, do segundo, e assim por diante.

Fazia o mesmo a respeito dos pecados, das obras de misericórdia, dos sentidos corporais e das faculdades da alma.

(Tudo por Jesus ou caminhos fáceis do amor divino, pelo Rev. Pe. Frederick William Faber, superior do oratório de S. Filipe de Neri - de Londres - Doutor em Teologia, Tradução portuguesa, H. Garnier.)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Em paz no meio da guerra

 


Se vos fosse possível prestar menos atenção ao ruído interior a tão variadas impressões, e viver em paz na guerra, seria deveras consolador. Lembrai-vos de que Nosso Senhor vos quer em tal estado e que nele Lhe rendeis maior glória do que em qualquer outro, sendo que vossas mesmas misérias e infidelidades se podem tornar uma bela matéria de confiança em Sua Bondade. 

A tempestade purifica a atmosfera, mas é passageira, e o sol surge em seguida mais belo e mais brilhante. Os suspiros, os gemidos, as lágrimas de um coração que só a Jesus ama são muito doces na expansão da reciprocidade do Amor Divino; as humilhações e os sofrimentos aliviam a impotência do pobre coração, o martírio ser-lhe-ia felicidade. Mas acreditais que os gemidos e as lágrimas de Madalena, junto ao túmulo do Salvador, que a agonia de Maria aos pés de Seu Jesus expirando na Cruz, não resultaram de um amor mais heróico? E o Amor de Jesus tão bom e tão terno, sofrendo sozinho e abandonado por Seu Pai e pelos homens, não terá sido o derradeiro grau do amor que sofre e se imola todo inteiro? Ah! viva Jesus, viva a Sua Cruz! 

É verdade que Jesus se queixou ao Pai: "Meu Pai, por que me abandonastes?" Pois bem! Podeis queixar- vos também, mas amorosamente, e depois do combate: é o grito do amor imoladoQuando o inimigo de Jesus e de nossa salvação vos atacar furiosamente, deveis humilhar-vos mais que o próprio demônio, dizendo a Nosso Senhor: 

"Ai de mim, Vós não lhe concedestes as mesmas Graças que a mim; ele não tem Salvador, e eu tenho um que é também Pai; ele só Vos ofendeu uma vez, eu fui ingrato, e infiel, milhares de vezes; é, pois, muito justo que ele seja o executor de Vossa Justiça. Ó meu Pai, eu me abismo no nada, mas Vós sois Pai, não me abandoneis; dai-me a mão e conduzi-me; minha vontade e meu coração pertencem a Vós, à Vossa Justiça". 

Que o Coração ardente de Amor de Jesus vos seja força, asilo, centro e calvário, que seja o túmulo do vosso ser, e depois a ressurreição, a vida, a glória. 

Deus não vos há de abandonar, mas Ele quer que o honreis no abandono e nos horrores das trevas, horrores esses que constituem o suplício do inferno; mas nesta vida é a Glória de Deus e Sua Misericórdia que triunfam dos demônios. As desolações interiores agradam mais ao Coração de vosso Esposo divino que todos os gozos e todas as luzes do Tabor. 

Se habitásseis além das nuvens e das tempestades, defrontando sempre um sol radiante, pouca atenção daríeis aos ventos e às neblinas rasteiras! Deixai, pois, que Nosso Senhor faça o que bem quiser, e segui-O cheio de amor e de gratidão por tudo. 

Coragem! Tende o coração sempre ao alto, sempre contente; que o espírito seja leve para carregar as tristezas, cantando o amor do tempo e da Pátria eterna.

(A Divina Eucaristia, volume 5, São Pedro Julião Eymard)

domingo, 18 de dezembro de 2022

Santa caridade e amor imperfeito

 De um certo resto de amor que muitas vezes

fica na alma que perdeu a santa caridade



Certamente a vida de um homem que, todo desfalecido, vai morrendo pouco a pouco num leito, quase já não merece lhe chamemos vida: dado que, ainda que ela seja vida, está, todavia tão misturada com a morte, que não se saberia dizer se é uma morte ainda viva, ou uma vida moribunda. Ai! como é esse um lastimável espetáculo, Teótimo! muito mais lastimável é, porém, o estado de uma alma que, ingrata ao seu Salvador, vai de momento em momento para trásretirando-se do amor divino por certos graus de indevoção e de deslealdade, até que, havendo-O deixado totalmente, fica na horrível escuridão de perdição; e esse amor que está no seu declínio e que vai perecendo e desfalecendo, é chamado amor imperfeito; porquanto, ainda que esteja inteiro na alma, aí não está, ao que parece, inteiramente, isto é, quase não está mais aderente à alma, e está a ponto de abandoná-la. Ora, sendo a caridade separada da alma pelo pecado, múltiplas vezes fica nesta uma certa semelhança de caridade, que nos pode iludir e divertir em vão; e dir-vos-ei o que é.

Enquanto está em nós, a caridade produz muitas ações e amor para com Deus, por cujo freqüente exercício nossa alma adquire um certo hábito e costume de amar a Deus, que não é a caridade, mas apenas um vinco e inclinação que a multidão das ações deu ao nosso coração. 

Depois de adquirir um longo hábito de pregar ou de dizer missa por eleição, múltiplas vezes nos acontece em sonho falar e dizer as mesmas coisas que diríamos pregando ou celebrando, de tal sorte que o costume ou hábito adquirido por eleição e virtude é de alguma sorte praticado depois sem eleição e sem virtude, visto como, geralmente falando, as ações feitas dormindo só têm da virtude uma aparente imagem, e são meros simulacros e representações dela. Assim a caridade, pela multidão dos atos que produz, imprime em nós uma certa facilidade de amar, que ela nos deixa mesmo depois que somos privados da sua presença.


Quando jovem escolar, vi que numa aldeia próxima de Paris, em certo poço havia um eco (1) que repetia várias vezes palavras que pronunciávamos lá ao pé. E, se algum idiota sem experiência tivesse ouvido aquelas repetições de palavras, teria crido que havia no fundo do poço algum homem que as fazia. Mas, pela filosofia, nós já sabíamos não haver ninguém no poço que repetisse as nossas palavras, mas ali haver apenas algumas concavidades, sendo numa das quais as nossas vozes colhidas, e, não podemos passar além, para não perecer de todo e empregarem as forças que lhes restavam produziam segundas vozes, e essas segundas vozes colhidas noutra concavidade produziam terceiras, e essas terceiras de igual maneira quartas, e assim consecutivamente até onze: de tal sorte que aquelas vozes feitas no poço já não eram mais as nossas vozes, porém simples semelhanças e imagens delas. 

(1) o que o autor diz de uma aldeia dos arredores de Paris existia em Paris mesmo; consoante os antiquários, seria essa a origem da rua do Puits-qui-parle, bairro do Panthléon.

E, de fato, muito havia que dizer entre as nossas vozes e aquelas; porque, quando nós dizíamos uma grande série de palavras, elas só repetiam algumas, encurtavam a pronúncia das sílabas que elas passavam muito depressa, e com tons e acentos completamente diferentes dos nossos, e assim só começavam a formar essas palavras depois de havê-las acabado de pronunciar. Em suma, não eram palavras de um homem vivo, mas, por assim dizer, palavras de um rochedo, de um rochedo oco e vazio, as quais, todavia representavam tão bem a voz humana de que se haviam originado, que com elas se teria um ignorante divertido e equivocado. 

Ora, quero agora dizer assim. Quando o santo amor de caridade encontra uma alma manejável, e faz nela alguma longa estada, produz nela um segundo amor que não é um amor de caridade, posto que provenha da caridade; mas é um amor humano, o qual, não obstante, se assemelha tanto à caridade, que, embora depois esta pereça na alma, parece nela estar sempre, visto haver deixado nela após si essa sua imagem e semelhança que a representa; de sorte que um ignorante se enganaria nisso, tal como os pássaros fizeram na pintura das uvas de Zêuxis, as quais eles cuidaram ser verdadeiras uvas, com tanta propriedade havia a arte imitado a natureza. E, todavia há muita diferença entre a caridade e o amor humano que ela produz em nósporquanto a voz da caridade pronuncia, intima e opera todos os mandamentos de Deus dentro dos nossos corações; o amor humano que fica após ela di-los realmente e os intima às vezes todos, mas nunca os opera todos, e sim alguns apenas: a caridade pronuncia e reúne todas as sílabas, isto é, todas as circunstâncias dos mandamentos de Deus; esse amor humano deixa sempre para trás alguma delas, e, sobretudo a da reta e pura intenção. E, quanto ao tom, a caridade o tem muito uniforme, doce e gracioso; mas esse amor humano vai sempre ou alto demais nas coisas terrenas ou baixo demais nas celestes, e nunca começa a sua tarefa senão depois que a caridade cessou de fazer a sua. 

Porque, enquanto a caridade está na alma, serve-se desse amor humano, que é a sua criatura, e emprega-o para facilitar as suas operações; de tal sorte que, durante esse tempo, as obras desse amor, como de um servo, pertencem à caridade, que lhes é a dona. Estando, porém, a caridade afastada, então as ações desse amor são totalmente dele, e não têm mais a estima e valor da caridade; pois, assim como o bastão de Eliseu, na ausência deste, embora na mão do servo Giezi, que o recebera da mão de Eliseu, não fazia nenhum milagre, assim também as ações feitas na ausência da caridade, pelo simples hábito do amor humano, não são de nenhum mérito nem de valor algum para a vida eterna, posto que da caridade tenha esse amor humano aprendido a fazê-las e seja apenas o servo dela. E isso assim se faz porque, na ausência da caridade, esse amor humano não tem mais nenhuma força sobrenatural para levar a alma à excelente ação do amor de Deus sobre todas as coisas. 

Quanto é perigoso esse amor imperfeito

Ai! meu Teótimo, vede, peço-vos, o pobre Judas, depois que traiu seu Mestre, como vai levar de novo o dinheiro aos Judeus, como reconhece seu pecado, como fala honrosamente do sangue daquele Cordeiro imaculado. Eram efeitos do amor imperfeito, que a precedente caridade passada lhe deixara no coração. 

Desce-se à impiedade por certos graus, e quase ninguém chega ao extremo da malícia num instante. 

Os perfumistas, conquanto já não estejam nas suas lojas, trazem longo tempo o odor dos perfumes que manejaram. Assim os que estiveram nos laboratórios dos ungüentos celestes, quer dizer, na santíssima caridade, guardam-lhe ainda o cheiro por algum tempo depois. Quando o veado passou a noite em algum lugar, mesmo pela manhã o cheiro e a exalação dele ainda ali está fresco: à tarde ele já é mais difícil de sentir, mas à medida que suas pegadas vão ficando velhas e duras, os cães vão também perdendo conhecimento.


Quando a caridade reinou algum tempo numa alma, achamos nesta as suas passadas, a sua pista, as suas pisadas, o seu cheiro por algum tempo depois que ela a deixou; mas pouco a pouco enfim tudo isso se dissipa, e perde-se toda sorte de conhecimento de que alguma vez a caridade nela tenha estado. 

Temos visto jovens bem criados no amor de Deus os quais, desencaminhando-se, ficaram por algum tempo no meio da sua infeliz decadência sem que se deixassem de ver neles grandes sinais da sua virtude passada; e, repugnando ao vício presente o hábito adquirido no tempo da caridade, durante alguns meses a gente custava a discernir se eles estavam fora da caridade ou não, e se eram virtuosos ou viciosos, até que o progresso fazia claramente conhecer que aqueles exercícios virtuosos não tiravam sua origem da caridade presente, mas da caridade passada; não do amor perfeito, mas do amor imperfeito que a caridade deixara após si, como sinal da habitação que fizera naquelas almas. 

Ora, esse amor imperfeito é bom em si mesmo, Teótimo, porque, sendo criatura da santa caridade, e como que do seu séquito, não pode deixar de ser bom e apto a servir fielmente a caridade enquanto ela permanece dentro da alma, e está sempre pronto a servi-la se ela voltar à alma; e, se ele não pode fazer as ações do amor perfeito, nem por isso, entretanto, é para desprezar, porque tal é a condição da sua natureza. Assim as estrelas, que em comparação com o sol são muito imperfeitas, são, todavia extremamente belas, olhadas em particular; e, não tendo lugar na presença do sol, têm no na sua ausência. 

Todavia, embora esse amor imperfeito seja bom em si, contudo nos é perigoso, por isto que muitas vezes nos contentamos com ter a ele só; pois, tendo vários traços exteriores e interiores da caridade, pensando ser a ela mesma que temos, nós nos divertimos, e pensamos ser santos; ao passo que nessa vã persuasão os pecados que no privaram da caridade crescem, aumentam e se multiplicam tanto, que afinal se tornam senhores do nosso coração. 

Se Jacob não tivesse abandonado a sua perfeita Raquel e se houvesse sempre conservado junto a ela no dia de suas núpcias, não teria sido enganado como foi; mas, pela haver deixado ir sem ele ao quarto, no dia seguinte ficou admiradíssimo de achar que em lugar dela tinha apenas a imperfeita Lia, que não obstante ele acreditava ser sua cara Raquel; assim, porém, o enganara Labão. Ora, do mesmo modo nos ilude o amor-próprio. Por pouco que deixemos a caridade ele introduz na nossa estima esse hábito imperfeito; e nos achamos nosso contentamento nele como se ele fosse a verdadeira caridade, até que alguma clara luz nos faça ver estarmos iludidos. 

Ó Deus! não é uma grande pena ver uma alma que se lisonjeia nessa imaginação de ser santa, ficando em repouso como se tivesse a caridade, verificar, todavia finalmente que a sua santidade é fingida, e que o seu repouso não passa de letargia, e a sua alegria de mania? 

Meio de reconhecer esse amor imperfeito

Mas, dir-me-eis, que meio para discernir se é Raquel, ou Lia, a caridade ou o amor imperfeito, que me dá os sentimentos de devoção de que sou tocado? Se, examinando em particular os objetos dos desejos, dos afetos e dos desígnios que tendes presentemente algum achásseis pelo qual quisésseis contravir à vontade e ao beneplácito de Deus, pecando mortalmente, é fora de qualquer dúvida que todo o sentimento toda a facilidade e presteza que tendes em servir a Deus não tem outra fonte senão o amor humano e imperfeitoporque, se o amor perfeito reinasse em vós, ó Senhor Deus! Romperia todo afeto, todo desejo, todo desígnio cujo objeto fosse tão pernicioso, e não poderia sofrer que o olhasse o vosso coração. 

Mas notai que eu disse dever esse exame ser feito dos afetos que tendes presentemente; porquanto não há necessidade de imaginardes os que poderiam nascer depois, visto bastar que sejamos fiéis nas ocorrências presentes, segundo a diversidade dos tempos, e ter cada estação bastante com seu trabalho e sua pena.
           
E se, todavia quisésseis exercitar o vosso coração na valentia espiritual, pela representação de diversos recontros e de diversos assaltos, poderíeis utilmente fazê-la, contanto que, após os atos dessa valentia imaginária que o vosso coração tivesse feito, não vos julgásseis mais valente. Porquanto os filhos de Efraim, que faziam maravilhas em bem desferir seus arcos nos ensaios de guerra que entre si faziam, quando chegou a ocasião de mostrá-lo, no dia da batalha, deram as costas (SI 77 9), e não tiveram sequer ânimo de disparar suas flechas, nem de olhar a ponta das de seus inimigos. 

Quando, pois, se faz a prática dessa valentia para as ocorrências futuras ou meramente possíveis, se se tem um sentimento bom e fiel, agradece-se por ele a Deus; pois esse sentimento é sempre bom; mas, no entanto deve a gente ficar com humildade entre a confiança e a desconfiança, esperando que, mediante a assistência divina faríamos na ocasião o que imaginamos, e receando, todavia que, segundo a nossa miséria ordinária, talvez não fizéssemos nada e perdêssemos ânimo; mas, se a desconfiança se tornasse tão desmedida que nos parecesse não termos nem força, nem coragem, e que, portanto nos adviesse desespero sobre o objeto das tentações imaginadas, como se não estivéssemos na caridade e graça de Deus, então, apesar do nosso sentimento e desânimo devemos tomar resolução de sermos realmente fiéis em tudo o que nos suceder até a tentação que nos aflige, e esperar que, quando ela chegar, Deus multiplicará Sua graça, redobrará Seu socorro, e prestar-nos-á toda a assistência necessária; e que, não nos dando a força para uma guerra imaginária, e não necessária, dar-no-Ia-á quando isso se tornar necessário. Porque, assim como muitos perderam a coragem no assalto, muitos também nele perderam o temor, e tomaram coragem e resolução na presença do perigo e da necessidade, coragem e resolução que nunca teriam sabido tomar na ausência dele.


E assim muitos servos de Deus, representando-se as tentações ausentes espantaram-se com elas quase ao ponto de perderem ânimo, os quais, todavia, em as vendo presentes, se comportaram mui corajosamente. 

Enfim, nesses espantos sentidos pela representação dos assaltos futuros, quando nos parece que o ânimo nos falta, basta desejarmos coragem e confiarmos em Deus, e Ele no-la dará quando for tempo. Por certo, nem sempre Sansão tinha a sua coragem: antes, está assinalado na Escritura que, vindo a ele furiosamente e rugindo o leão das vinhas de Tamnata, o espírito de Deus possuiu-o (Juiz 14, 5-6); quer dizer, Deus deu-lhe o movimento de uma nova força e de uma nova coragem, e ele estraçalhou o leão como o teria feito a um cabrito (Juiz 15), e do mesmo modo quando desbaratou os mil Filisteus que queriam derrotá-lo na campina de Lechi. 

Assim, meu caro Teótimo, não é necessário que tenhamos sempre o sentimento e movimento da coragem requerida para vencer o leão rugidor que anda para cá e para lá rondando para nos devorar (1 Ped 5, 8); isso poderia dar-nos vaidade a presunção. Basta, sim, que tenhamos bom desejo de combater valentemente, e uma perfeita confiança de que o Espírito divino nos assistirá com seu socorro quando se apresentar a ocasião de empregá-lo. 

(Tratado do amor de Deus, São Francisco de Sales, livro quarto, capítulos IX, X e X
I)

SEJA UM BENFEITOR!