Sumário. É tão agradável a Deus o sacrifício da nossa própria vontade, que Jesus Cristo desceu sobre a terra para nos ensinar a maneira de o fazer e em toda a sua vida não fez outra coisa senão dar-nos disso as mais sublimes lições com as suas palavras e com os seus exemplos. Eis, portanto, o que devemos ter em mira em todas as nossas ações: conformar a nossa vontade com a divina, especialmente no que mais repugna ao amor próprio. Vale mais um Bendito seja Deus, dito nas adversidades, do que mil agradecimentos na prosperidade.
I. É certo que a nossa salvação consiste em amar a Deus, nosso supremo Bem; porque a alma que não O ama, já não vive, mas está morta (1). A perfeição, porém, do amor consiste em conformar a nossa vontade com a divina; pois que, como diz o Aeropagita, o efeito principal do amor é unir as vontades dos que se amam, de sorte que não tenham senão um só coração e uma só vontade.
É isto o que antes de mais nada com as suas palavras e com os seus exemplos veio ensinar-nos Jesus Cristo, que nos foi dado por Deus tanto para ser nosso Salvador como nosso modelo. Pelo que o Apóstolo escreve que as primeiras palavras de Jesus, ao entrar no mundo, foram estas: Ecce venio ut faciam, Deus, voluntatem tuam (2) — “Eis que venho para fazer, ó Deus, a tua vontade”. Meu Deus, recusastes as hóstias e oblações dos homens; não Vos agradaram os holocaustos que Vos ofereciam pelos seus pecados. Quereis que Vos sacrifique morrendo este meu corpo, que Vós mesmo me haveis dado. Eis-me aqui, Senhor, estou pronto para fazer a vossa santíssima vontade.
No correr de sua vida, Jesus Cristo tem manifestado diversas vezes a sua submissão e conformidade de vontade, dizendo: Eu desci do céu não para fazer a minha vontade, senão a d’Aquele que me enviou. Quis que conhecêssemos o grande amor a seu Pai pelo ver ir à morte por obediência à vontade d’Este. Por isso disse aos apóstolos: Para que conheça o mundo que amo ao Pai, e assim como me ordenou o Pai, assim faço: Levantai-vos; vamo-nos d´aqui (3).
Depois no horto de Getsêmani, parece que o Senhor, opresso pelo temor, pelo aborrecimento e pela tristeza, não sabe fazer outra oração senão esta: Meu Pai, não seja como eu quero, mas sim como Tu (4). Meu Pai, se não pode passar este cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade (5). — Numa palavra, é tão grande a excelência da conformidade com a vontade de Deus, e Jesus Cristo exige tão rigorosamente que a pratiquemos, que protesta ter por seus discípulos somente aqueles que cumprem a vontade divina (6).
II. Se agrada tanto o Deus o sacrifício de nossa vontade, que enviou à terra seu próprio Filho para nos ensinar a maneira de a sacrificarmos, tinha razão o santo abade Nilo de dizer que nas nossas orações não devemos pedir a Deus que faça o que nós queremos, mas que nos dê a graça para bem fazermos o que Ele quer. — É a isso que se devem dirigir todos os nossos desejos, devoções, meditações e comunhões: o cumprimento da vontade divina, especialmente naquilo que repugna mais ao nosso amor próprio. Lembremo-nos sempre do que costumava dizer o Bem-aventurado João de Ávila: Um só Bendito seja Deus, nas adversidades, vale mais do que mil agradecimentos na prosperidade.
Toda a minha desgraça, ó meu Deus, foi não querer sujeitar-me no passado à vossa santa vontade. Detesto e amaldiçôo mil vezes esses dias e momentos em que, para seguir a minha vontade, me opus à vossa, ó Deus de minha alma. Eu Vô-la consagro agora sem reserva e quero unir esta minha oferta à que vosso divino Filho fez de si mesmo e continua a fazer sobre os nossos altares. Recebei-a, ó meu Senhor, e ligai-me de tal modo ao vosso amor, que nunca mais me possa revoltar contra Vós.
Referências:
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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 14-17)
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