Labora sicut bonus miles Christi
Labuta como um bom soldado de Cristo
(2 Tm 2, 2).
É somente pela luta que o homem glorifica a Deus; se deve ganhar, com o suor do rosto, os alimentos que lhe sustentarão o corpo, deverá pela coragem conquistar as graças que lhe hão de fortalecer e embelezar a alma. Mas qual deve ser sua maneira de combater, que qualidades deve revelar nessa guerra incessante, que durará toda sua vida? O soldado de Deus deve ser obediente, paciente, humilde, sempre senhor de si mesmo.
Obediência
A primeira qualidade de um soldado é o espírito de disciplina; é-lhe exigido, antes de tudo, que obedeça, que avance quando lhe for dada ordem, ou permaneça em seu posto, com risco da própria vida, quando os chefes assim o ordenarem. Um exército em que cada soldado seguisse suas próprias idéias e procedesse a seu bel-prazer, estaria condenado a uma derrota certa. Com maioria de razão, o soldado de Deus, que só pode vencer se for sustentado por Deus, deve combater conforme Deus quer; deve ir, não aonde lhe agrada, mas aonde Deus o quer; deve agir, não segundo seu gosto ou capricho, mas segundo os desígnios de Deus; deve empregar os meios que a Providência lhe prepara, ou que o Espírito divino lhe inspirar, e não atender às suas idéias individuais; deve renunciar a seus próprios projetos e submeter-se à opinião e às ordens daqueles que têm por encargo esclarecê-los e conduzi-los.
São Francisco de Assis, submisso às inspirações que recebera, funda sua ordem sobre as bases da pobreza e da humildade. Este grande santo era de uma simplicidade encantadora e tudo quanto respirasse altivez, convenção, grandeza, lhe era estranho. Entre seus primeiros discípulos; um dos mais notáveis pela inteligência, pela energia e mesmo pelo fervor, foi Frei Elias; mas seu espírito não era o do santo fundador; às idéias de Francisco, entretanto, tão conformes à doutrina do Evangelho, queria substituir suas próprias idéias. Julgava, sem dúvida, a simplicidade ingênua de seu Pai indigna de urna ordem destinada ao apostolado, apta somente a inspirar desprezo aos fiéis: parecia-lhe necessário maior dignidade, maior nobreza. Não era o Espírito do Senhor que o inspirava e o impelia nesse caminho, e sim o espírito do mundo. O fim deste homem celebre provou bem que as maiores qualidades de espírito e de coração, se não forem aliadas a uma perfeita submissão à graça, de nada servem, e antes fazem sobressair a fraqueza humana.
Quantos esforços perdidos, quantas lutas improfícuas naqueles que agem segundo a sua própria prudência e vontade, em vez de procurar conhecer e seguir a vontade divina. O povo de Israel - como no-lo demonstra toda a sua história - era vencido infalivelmente quando marchava para o combate antes de receber as ordens do Senhor; era-lhe, ao contrário, garantida a vitória quando consultava cuidadosamente os oráculos divinos e a eles se conformava. Deus nunca abandona quem combate por Ele e só quer cumprir a Sua santa vontade. Este alcançará sempre, graças a Deus, vitória sobre todos os seus inimigos.
Paciência
A guerra é uma rude escola de paciência onde as fadigas, são penosas e mais enervantes que os próprios perigos! E bom soldado aquele que dá provas de tolerância, a quem nada desanima e nada assusta; nem as marchas e contra-marchas, nem as vigílias, nem as privações, nem as intempéries, aquele que não se queixa se for mal alimentado, mal alojado, mal vestido; que suporta, alegre, todos os sofrimentos, feliz de poder, mesmo a tal preço, contribuir para a defesa e o triunfo de sua pátria.
A luta que devem sustentar os soldados de Cristo é fértil em trabalhos duros e o cristão que quer alcançar a vitória deve armar-se de uma paciência a toda prova.
Os sofrimentos lhe vêm, quer de Deus, que experimenta Seus fiéis, afastando-Se deles e parecendo abandoná-los a si mesmos; quer dos homens, que são os instrumentos de que Deus se utiliza para purificar e santificar os Seus servos; e quem murmura, pois, contra o próximo, inconscientemente murmura contra Deus; quer enfim dos demônios que, ansiando pela sua perda, não o deixam em repouso.
O sofrimento é indispensável ao desenvolvimento da virtude, como a água à planta; a virtude que não é experimentada se estiola, como a planta num solo árido, chegando mesmo a secar e morrer. O sofrimento é um dom de Deus, pois oferece ocasiões de mérito, ajudando a reprimir os ímpetos da natureza, a diminuir-lhe o ardor, a moderar-lhe as tendências, a mantê-la sob o domínio da razão e da fé. Oh! que grande ciência adquire quem sabe sofrer!
O sofrimento fortifica a virtude. Doce é o espetáculo de uma alma que se abre à vida de piedade; semelhante à planta pequenina, cujo caule brota da terra, tem uma aparência delicada que encanta; mas, se a plantinha agrada porque é tenra, também é frágil e sensível, um nada a machuca, uma rajada de vento pode abatê-la, um raio de sol, murchá-la; quando houver experimentado a aridez, as tempestades, as intempéries de toda espécie, será mais forte e estará exposta a menos perigos. Assim o soldado de Cristo que sofreu a aridez, as tentações, as tribulações de toda sorte, adquire grande energia, se, contudo, souber suportar essas tristezas com paciência e amor. A tal preço somente será invencível e os inimigos nada poderão contra ele.
Humildade
Quando os chefes de exército se preparam para conduzir seus soldados ao combate, apresentam-lhes a vitória como certa, e, para aumentar-lhes a confiança, cumulam-nos de elogios, exaltam-nos como se fossem os primeiros guerreiros do mundo. Todos os soldados de Deus são destinados a vencer e devem lutar com a esperança, com a certeza do triunfo, como os dos exércitos humanos, mas, longe de, porem a confiança em si mesmos é pela arma da humildade que devem combater e que poderão alcançar a vitória.
Quando Gedeão, para repelir os madianitas reuniu um exército, o Senhor achou-o numeroso demais e reduziu-o, por duas vezes, até formar um número irrisório.
Trezentos guerreiros, apenas, bastaram para esmagar a multidão imensa de inimigos. "Não quero, dissera o Senhor, que Israel se glorie contra mim e diga: "Fui libertado pelas minhas próprias forças". É por meios mui simples e humildes que o Senhor opera constantes prodígios em favor de seu povo. É também menos por atos de ostentação que por obras ignoradas ou de pouco valor ao juízo do mundo, mas inspiradas numa grande pureza de intenção, em um amor ardente, cheio de delicadezas, que Deus eleva Seus eleitos à perfeição. Os feitos brilhantes favorecem o orgulho e não convêm senão às almas já adiantadas na humildade.
Abraão não começou pelo sacrifício de Isaac; quando Deus o submeteu a esta prova, ele já atingira uma consumada virtude, adquirida pela fidelidade aos deveres e pela piedade constante, que o levava a erguer um altar em todo lugar por onde passasse, bem como por outras obras insignificantes, porém preciosas diante de Deus. Este grande patriarca era humilde de coração, como prova sua conduta em relação ao seu sobrinho Lot, cedendo-lhe de tão bom grado a melhor parte; era bom e afetuoso, como toda a sua história o demonstra. Foi pela prática dessas virtudes que se elevou, pouco a pouco, ao heroísmo. Essa mesma simplicidade, essa humildade, essa fidelidade às virtudes da vida comum, encontram-se também nos outros santos patriarcas, em Isaac, Jacó, José; foi seguindo igual caminho que se tornaram verdadeiros servos de Deus e Seus amigos prediletos.
Não é de supor que essas humildes virtudes só exijam pequenos esforços: exigem, pelo contrário, esforços generosos e constantes, mas que em geral passam despercebidos; são desconhecidos dos homens, porém apreciados por Deus, e quem, continuamente, pratica essas pequenas virtudes, é, na realidade, um valente lutador e um insigne vencedor.
É, de fato, muito merecedor quem, na luta sem tréguas, que deve ser a de todos os homens neste mundo, não, visa atos de realce, postos de honra, reputação brilhante, mas cumpre fielmente com seu dever, alheio à opinião dos homens, e se dedica, sem aparato, com o único intuito de realizar sua tarefa. Esta disposição de alma, entretanto; não basta para constituir um humilde soldado de Cristo.
É mister, para ter direito a esse título, não somente não procurar a glória exterior, como também não se vangloriar a si mesmo; é mister reconhecer sua miséria e aceitar, de bom grado, ser imperfeito, cheio de defeitos, digno de compaixão.
É-nos um grande sofrimento verificar nossos defeitos; foi até este o castigo imediato do primeiro pecado, a causa dessa vergonha, muito bem fundada, que levou Adão e Eva a se esconderem depois da falta cometida. Tal sofrimento é justo, e temos o dever de submeter-nos a ele. Devemos lastimar as nossas faltas, sem, porém, nos deixarmos abater, sem nos irritarmos contra nós mesmos. A humildade que produz abatimento e desânimo é falsa e ilusória e não provém de Deus, mas do demônio. Reconhece-se a árvore pelos frutos. Quando uma disposição de alma nos leva a suspender, por um instante sequer, a obra de nossa santificação, quando nos interrompe o impulso para o bem e nos paralisa as forças, então essa disposição é sugerida pelo nosso inimigo.
O maldito perturba as almas ou as desanima a fim de perdê-las; sob a capa da humildade, excita o amor próprio, amor próprio despeitado da alma que contava consigo mesma, que se aflige com sua fraqueza e se envergonha ao reconhecer-se vil e desprezível. Há um recôndito despeito de orgulho em toda alma desanimada.
O Senhor inspira uma humildade muito diversa e a põe, não somente no espírito, esclarecendo a alma sobre suas misérias, como também no coração, levando-a a consentir, de bom grado, em se humilhar, em se confessar pequenina e má. Então, nada se opõe à segunda graça, que, acompanha sempre a verdadeira humildade, graça de confiança e de paz. Nada posso por mim mesmo, diz o humilde soldado de Jesus, ao experimentar mais uma vez a sua fragilidade, nada sou, tametsi nihil sum, mas tudo posso naquele que me fortifica: omnia possum in eo qui me confortat. Levanta-se, então, cheio de coragem, e corre a vingar a derrota por novas vitórias.
Paz da alma e posse de si mesmo
Um bom soldado é sempre senhor de si; saberá em caso de necessidade, demonstrar uma coragem impetuosa, mas também, sendo preciso, saberá moderar o entusiasmo, nunca cederá a um ímpeto excessivo, nem a um covarde abatimento; dominar-se sempre é a condição da verdadeira coragem que o torna invencível. Soldados de Deus, devemos também ser sempre senhores de nós mesmos e conservar essa paz que nosso Senhor ressuscitado não se cansava de desejar, aos apóstolos. Na paz encontraremos Deus, na paz receberemos a força de Deus. Se a paz estiver ausente de nosso coração ao lutarmos, lembremo-nos que nosso ardor de combate provém antes de nossas paixões que da graça. Neste caso, é a natureza que opera, são interesses humanos que nos dirigem. Com efeito, é próprio da natureza o afligir-se e perturbar-se.
Deus nunca Se perturba; Deus vive na paz, Deus é paz, Ele, o ser imutável e imóvel que comunica todo movimento; e Sua ação é forte, mas suave. A alma que deixa Deus agir nela, que não opõe sua atividade humana ao impulso da graça, sentirá forçosamente em si os sinais da ação divina, permanecendo, portanto, forte e calma, venha o que vier. Se, ao contrário, ceder ao ímpeto da natureza, outros serão os caracteres dessa ação, mas nesse caso que valem suas obras, que resultado produzem seus esforços?
Quem vive na paz, recebe as puras luzes de Deus; quem se entrega à agitação e à angústia, ou quer, a todo custo, satisfazer suas inclinações e ver realizar-se sua própria vontade, obsta o esclarecimento divino; seu espírito obscurecido, velado, qual névoa, pelas inquietações que aceita, ou não procura afastar, pelos desejos naturais que lhe prendem a atenção, pelo receio de ver falhar-lhe os planos, não recebe mais os raios do Sol divino. Tal alma não pensa senão em seus temores, vive mergulhada em suas preocupações, como lhe podem chegar as santas inspirações? Está, pois, muito exposta a enganar-se; pode, por exemplo, conhecer mal seus deveres, exagerar-lhes as dificuldades, não perceber bem as razões que lhe sustentariam a coragem; daí muitas derrotas. Somente quem vive na paz será um valoroso soldado; a luz divina lhe mostrará, por certo, os perigos que corre, os sacrifícios que deve fazer, mas ao mesmo tempo lhe fará compreender que tudo se torna fácil com o auxílio de Deus. Então, a alma porá mãos à obra sem hesitar.
Os israelitas antes de entrar na terra prometida escolheram doze homens e ali os enviaram como exploradores. Alguns, sob a influência de suas paixões, não viram a terra tal qual era, e, cedendo ao medo e à covardia, julgaram que seria loucura e temeridade tentar conquistá-la.
Dois somente, entre eles, mais calmos, mais senhores de si, porque, sem dúvida, possuíam mais que os outros a paz, da alma, apreciaram ponderadamente a situação e não perderam a coragem. A posse, o gozo de Deus, a união com Deus, mesmo neste mundo, eis a terra prometida da alma cristã. Mas, ai de nós! pouquíssimas são as almas que a consideram com as devidas disposições e a apreciam ao seu justo valor; a maior parte, como os enviados de Moisés: consideram a sua conquista como impossível; os obstáculos a vencer os intimidam, a visão de sua fraqueza os desanima. Somente aqueles que não cedem ao temor, que permanecem firmes e calmos, aqueles que possuem a paz da alma, põem a sua confiança em Deus e tentam generosamente a conquista.
Não pensemos, como acontece com demasiada freqüência, que a paz da alma seja um dom reservado de que é cioso, e que só concede a alguns privilegiados. É opinião corrente que a paz da alma não pode coexistir com a luta "Não posso gozar da paz nas circunstâncias em que a Providência me colocou; entre múltiplos lides e os cuidados que me cercam; não posso gozar dela com o meu gênio, inclinado ora à agitação, ora ao abatimento; tomo muito a peito proceder bem e ver que os outros procedam bem, como então conservar a paz quando cometo tantas faltas e vejo os outros caírem em tantos erros?"
Desculpas fúteis, com as quais nos iludimos a nós mesmos e deixamos de prosseguir na conquista de tão estimável bem. Não caem neste erro aqueles que compreendem toda a importância dessa paz; pensam, com razão, que Deus, infinitamente bom, não quer recusar às almas de boa vontade um dom tão necessário. Aqueles que não lhe sabem o valor e não empregam todos os esforços por adquiri-lo, mostram que estão pouco esclarecidos a respeito e que desconhecem o caminho que leva a Deus.
Quando uma alma provar a paz, com que carinhoso desvelo a deve conservar! Como se deve esmerar por não a perturbar!
Quer triunfe, quer sucumba, deve sempre conservar a paz, até que suas quedas e suas vitórias, seus pecados e suas virtudes desapareçam na paz. Ao considerar seus inimigos, procurando descobrir-lhes os ataques e os meios de ação e, ao mesmo tempo, reconhecer os seus próprios pontos fracos, deve fazer esse exame dentro da paz como numa fortaleza inexpugnável. Deveria aspirar e respirar essa paz, e dela impregnar todos os seus atos.
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