quinta-feira, 22 de março de 2018

Tanto mais agradável a Deus uma alma pecadora, quanto mais vil se considera



  Segundo o texto de Job (11,17) e o pensar de São Bernardo, a alma pecadora parecerá tanto menos vil aos olhos de Deus, quanto for mais a seus próprios olhos, lembrando-se de seus pecados."

     É assim que nos utilizamos das nossas faltas e, como diz Fénelon, maior serviço nos prestarão elas, rebaixando-nos aos nossos olhos, do que as boas obras, dando-nos consolações. "As faltas são sempre faltas; mas é certo que elas tem a virtude de nos confundir e fazer-nos voltar a Deus, e com isto fazem-nos um grande bem."

      Tais matérias há que aparentemente sujam os vestidos e toda via servem para lhes tirar nódoas. Tal é o uso que os justos fazem dos seus pecados, detestando-os sinceramente. Deles se servem para purificar a alma das máculas do orgulho, o maior dos pecados.

    "É destarte que, insiste S. Bernardo, o justo cai sob as mãos de Deus e, por uma estranha maravilha, o pecado por ele cometido contribui para a sua justificação... Não é a mão de Deus que ampara o pecador, quando é a humildade que o abate?"

      Aprendamos a utilizar-nos das nossas faltas por este meio; apenas nos tenham escapado, devemo-las delir pela penitência. Tiremos delas igualmente proveito, quando a sua lembrança nos vier entristecer. Há ervas de muito mau odor que, à força de dessecar, acabam por exalar um aroma agradável. Que o mesmo suceda com os pecados da nossa pobre vida. Sirvam eles para o nosso bem e repitamos mais uma vez as palavras admiráveis do beato Cláudio de la Colombière: "Ditosas misérias, cuja lembrança me faz corar os olhos de Deus e rebaixar-me diante dos homens! Se pois para uma necessidade, não vos quereria trocar pelos méritos e virtudes alheias. Prefiro ser como é força que seja para ser humilde, Renuncio a todas as graças que me hajam de privar deste benefício e, para o não perder, consinto que me tirem tudo o mais."
***
    Semelhantes reflexões encontramos nas obras do ilustre jesuíta Daniel Considine que diz mais ou menos assim:

     Quanto mais te abandonares a Deus, mais poderá fazer de ti; e nunca estarás tão completamente abaixo da sua direção como na hora em que menos confiares em ti e te entregares sem reserva ao seu governo...

     Faze por crescer cada vez mais no profundo conhecimento de que nada podes de ti mesmo, absolutamente nada; mas que dependes inteiramente de Deus. Destarte tornará impossível todo e qualquer sentimento de vanglória....
     Fraquezas e faltas imprevistas não te deveriam aterram nem desnortear; pelo contrário, pode tirar delas grande proveito, humilhando-te por causa das mesmas.
     Não é bom sinal perturbares-te à vista dos teus defeitos. O que importa é voltares-te ao Senhor com amorosa aflição, mas ao mesmo tempo com tão inteira confiança que estejas seguro do seu perdão. E logo continua a amá-lo e a viver feliz em sua companhia. Assim é que procediam os Santos.

     Inquietação interior, perturbação, alheamento de Deus provindo de faltas cometidas - tudo isso nasce do orgulho. Pouco importa o que penses ou sintas, nada disto pode afastar-te de Deus. Só a vontade é que decide.

     Se formos humildes, seremos leais e amantes da verdade, sempre prontos a confessar as nossas faltas a Deus e aos homens, e, convencidos de nossa insuficiência no serviço de Deus, não mendigaremos aos homens a estima que não nos compete. Ponhamos de parte a hipocrisia que pretende fazer-nos aparecer melhores do que de fato somos; sejamos sinceros e amigos da verdade perante Deus e os homens.

     S. Madalena entendia tão bem tratar com o Senhor, que lhe admiramos aquela pia audácia tão sua... Pecados perdoados não constituem impedimento à vossa íntima união com Deus, formam antes como um novo título ao seu amor. Desde a hora em que Jesus disse a Maria Madalena: "Os teus pecados te são perdoados, vai em paz!" - nunca mais se mencionam os pecados da penitente. Nem parece angustiar-se por eles. Nunca mais se conserva arredia do Senhor com o pensamento de que outros tenham feito maior jus ao amor do Mestre do que ela, a grande pecadora de outrora. Aproxima-se de Jesus o mais possível, e o Senhor não a repudia. É só no bondoso Mestre que Madalena pensa, não em si mesma, e é nisto que está o segredo da paz da alma e da santidade.

    Uma vez convencidos de que por nós mesmos não somos senão uma congérie de fraquezas, misérias e más inclinações, o único expediente é abismar-nos completamente no amorosíssimo Coração de Jesus. Não seremos jamais por Ele desprezados nem rejeitados. Destarte acabaremos por esquecer-nos de nós mesmos, unicamente empenhados em agradar a Deus. E já não haverá perigo de temeridade e presunção. A misericórdia do Senhor é mais real e generosa do que o homem possa compreender.

     Esforça-te por viver sempre com Deus. Quanto maior for a tua miséria, mas, sim, o nosso egoísmo. Não receies que seja demasiada a confiança que nele deposites. Avante, pois, com santa alegria! Fora com essas hesitações! Abandona-te completamente ao seu divino amor!

     Desta forma, a par da preciosíssima virtude da humildade e duma santa fortaleza da alma, nasce em nosso coração, por meio delas, a régia tranquilidade dos espíritos devotos. Como amantes da humildade e das humilhações, evitaremos a menor sombra de perturbação, de desassossego e desânimo; banindo de nós toda tristeza, andaremos alegres no Senhor, prazenteiros e amáveis.


Retirado do Livro: A Arte de Aproveitar as Próprias Faltas, São Francisco de Sales.
Fonte:

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