São Francisco de Sales
Tratado do amor de Deus
Livro oitavo, Capítulo VIII
São tão fortes e prementes as palavras pelas quais Nosso Senhor nos exorta a tendermos e pretendermos a perfeição, que não poderíamos dissimular a obrigação que temos de nos empenharmos nesse desígnio. Sede santos, diz Ele, porque Eu sou santo (Lv., 11, 44). Quem é santo seja ainda mais santificado, e quem é justo seja ainda mais justificado (Apoc., 22, 11). Sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito (Mt., 5, 48). Por isso, o grande São Bernardo, escrevendo ao glorioso São Guarino, abade de Aux[1] cuja vida e milagres tão bom odor exalaram nesta diocese, diz: O homem justo nunca diz: Basta; tem sempre fome e sede de justiça.
De certo, Teótimo, quanto aos bens temporais, nada basta àquele a quem aquilo que basta não basta; pois que é que pode bastar a um coração ao qual a suficiência não é suficiente? Mas quanto aos bens espirituais, não tem o que lhe basta aquele a quem basta ter o que lhe basta e a suficiência não é suficiente, porque a verdadeira suficiência nas coisas divinas consiste em parte no desejo da afluência. No começo do mundo Deus mandou à terra produzir a erva verde dando a sua semente, e toda árvore frutífera dando o seu fruto, cada uma segundo a sua espécie, que teve também sua semente em si mesma (Gn., 1, 11).
E não vemos por experiência que as plantas e frutos não têm o seu justo crescimento e maturidade senão quando dão seus grãos e pevides, que lhes servem de prole para a produção de plantas e de árvores de igual espécie? Jamais virtudes têm a sua justa estatura e suficiência, que não produzem em nós desejos de fazermos progressos, que, quais sementes espirituais, sirvam na produção de novos graus de virtudes. E parece-me que a terra do nosso coração tem ordem de germinar as plantas das virtudes que dão os frutos das santas obras, cada uma segundo o seu gênero, e que tenha as sementes dos desejos e desígnios de sempre multiplicar e avançar em perfeição. E a virtude que não tem o grão ou a pevide desses desejos não está na sua suficiência e maturidade. "Oh! pois, diz São Bernardo ao indolente, não queres adiantar-te na perfeição? - Não. - E também não queres piorar? - Em verdade, não. - E como então não queres ser nem pior nem melhor? Ai! pobre homem, queres ser aquilo que não pode ser. Realmente, nada é estável nem firme neste mundo; mas do homem ainda mais particularmente é dito que nunca fica num mesmo estado (Job., 14, 2). Cumpre, pois, ou que avance, ou que retroceda".
Ora, eu não digo, como não o diz também São Bernardo, que seja pecado não praticar os conselhos. Não, certamente, Teótimo: pois a diferença própria do mandamento ao conselho é que o mandamento nos obriga sob pena de pecado, e o conselho nos convida sem pena de pecado. Não obstante, eu digo que é um grande pecado desprezar a pretensão à perfeição cristã, e ainda mais o desprezar a advertência pela qual Nosso Senhor a ela nos chama; mas é uma impiedade insuportável desprezar os conselhos e meios de chegar a ela que Nosso Senhor nos assinala. É uma heresia dizer que Nosso Senhor não nos aconselhou bem, e uma blasfêmia dizer a Deus: Retira-te de nós, não queremos a ciência dos teus caminhos (Job., 21, 14). Mas é uma irreverência horrível contra aquele que com tanto amor e suavidade nos convida à perfeição, dizermos: Não quero ser santo nem perfeito, nem mais ter parte na Vossa benevolência, nem seguir os conselhos que me dais para fazer progressos nela.
Bem que se pode, sem pecar, não seguir os conselhos, pelo afeto que se tem alhures: como, por exemplo, bem se pode não vender o que se tem e não o dar aos pobres, porque não se tem a coragem de fazer tamanha renúncia; bem se pode também casar, porque se ama uma mulher, ou porque não se tem bastante força na alma para empreender a guerra que é preciso fazer à carne. Mas fazer profissão de não querer seguir os conselhos, nem qualquer deles, isso não se pode fazer sem desprezo daquele que os dá. Não seguir o conselho de virgindade, a fim de se casar, isso não é malfeito: porém casar-se por preferir o casamento à castidade, como fazem os hereges, é um grande desprezo ou do conselheiro ou do conselho. Beber vinho, contra o parecer do médico, quando se é vencido pela sêde ou pela fantasia de bebê-lo, propriamente não é desprezar o médico nem seu parecer, porém dizer: Não quero seguir o conselho do médico; deve isso provir de uma má estima que se tem dele. Ora, quanto aos homens, pode-se muitas vezes desprezar-lhes o conselho, e não desprezar aqueles que o dão, porque não é desprezar um homem o achar que ele tenha errado. Mas quanto a Deus, rejeitar o Seu conselho e desprezá-lO, isto não pode provir senão do juízo que se faz de que Ele não haja aconselhado bem; o que não pode ser pensado senão por espírito de blasfêmia; como se Deus não fosse bastante sábio para saber, ou bastante bom para querer aconselhar bem. E o mesmo se dá com os conselhos da Igreja, a qual, em razão da contínua assistência do Espírito Santo, que a ensina e guia em toda verdade, nunca pode dar maus conselhos.
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