quarta-feira, 3 de abril de 2013

A Curiosidade - Santo Agostinho



À tentação sobredita junta-se outra, mais perigosa sob múltiplos aspectos. Além da concupiscência da carne – que vegeta na deleitação de todos os sentidos e prazeres, e mata a todos os que a servem, isto é, àqueles que se afastam para longe de Vós – pulula na alma, em virtude dos próprios sentidos do corpo, não um apetite de se deleitar na carne, mas um desejo de conhecer tudo, por meio da carne. Este desejo curioso e vão, disfarça-se sob o nome de “conhecimento” e de “ciência”. Como nasce da paixão de conhecer tudo, é chamado nas divinas Escrituras a concupiscência dos olhos(1), por serem estes os sentidos mais aptos para o conhecimento.

É aos olhos que propriamente pertence o ver. Empregamos, contudo, este termo, mesmo em relação aos outros sentidos, quando os usamos para obter qualquer conhecimento. Assim, não dizemos: “ouve como brilha”, “cheira como resplandece”, “saboreia como reluz”, “apalpa como cintila”. Mas já podemos dizer que todas essas coisas se vêem. Por isso não só dizemos: “vê como isto brilha” – pois só os olhos o podem sentir, – mas também: “vê como ressoa, vê como cheira, vê como sabe bem, vê como é duro”. É por isso, como já disse, que se chama concupiscência dos olhos à total experiência que nos vem pelos sentidos. Apesar do ofício da vista pertencer primariamente aos olhos, contudo os restantes sentidos usurpam-no por analogia, quando procuram um conhecimento qualquer.

Daqui se vê claramente quanto a volúpia e a curiosidade agem em nós pelos sentidos: o prazer corre atrás do belo, do harmonioso, do suave, do saboroso, do brando; a curiosidade, porém, gosta às vezes de experimentar o contrário dessas sensações, não para se sujeitar a enfados dolorosos, mas para satisfazer a paixão de tudo examinar e conhecer.

Que gosto há em ver um cadáver dilacerado, a que se tem horror? Apesar disso, onde quer que esteja, toda a gente lá acorre ainda que, vendo-o, se entristeça e empalideça. Depois, até em sonhos temem vê-lo, como se alguém os tivesse obrigado a ir examiná-lo, quando estavam acordados, ou como se qualquer anúncio de beleza os tivesse persuadido a lá irem.

O mesmo se dá com os outros sentidos. Iríamos longe se os percorrêssemos a todos. Por causa desta doença da curiosidade, exibem-se no teatro cenas monstruosas de superstição. Dela nasce o desejo de perscrutar os segredos preternaturais que afinal nada nos aproveita conhecer, e que os homens anseiam saber, só por saber. 

É ainda a curiosidade que, com o mesmo intuito de alcançar uma ciência perversa, faz recorrer o homem às artes mágicas. Enfim é ela que, até na religião, nos arrasta a tentar a Deus, pedindo-Lhe milagres e prodígios, não porque os exija a salvação das almas, mas só porque se deseja fazer a experiência.

Neste bosque imenso, repleto de tantas insídias e perigos, cortei e expulsei da minha alma muitos males. Vós assim me o concedestes, ó Deus da minha salvação. Mas quando no meio de tantas tentações desta espécie, que por todos os lados me circundam a vida quotidiana, ousarei afirmar que nenhuma delas me há de ver, nem me ei de deixar arrastar por nenhuma curiosidade vã?

Os teatros, é certo, já me não arrebatam nem procuro conhecer o curso dos astros, nem nunca a minha alma esperou as respostas das sombras de que se vale a magia para as suas respostas. Detesto todos estes ritos sacrílegos. Mas, ó Senhor meu Deus, a quem devo servir na humilhação e simplicidade, com quantas maquinações me incita o inimigo a pedir-Vos um sinal! Contudo suplico-Vos pelo nosso Chefe e nossa Pátria – a pura e casta Jerusalém – que assim como até agora esteve longe de mim este consentimento, assim continue a estar cada vez mais. Quando Vos peço a salvação de alguém, o fim do meu intento é muito diferente. Concedei-me agora e no futuro a graça de Vos servir jubilosamente fazendo Vós o que quiserdes.

Contudo, quem poderá contar as insignificantes e desprezíveis misérias que todos os dias tentam a nossa curiosidade, e o número de vezes em que escorregamos? Quantas e quantas vezes não ouvimos contar banalidades! Ao princípio toleramo-las, só para não ofender os fracos; mas depois ouvimo-las com gosto sempre crescente!

Já não contemplo um cão a correr atrás duma lebre quando isso sucede no circo. Mas se a caçada for no campo, que eu casualmente atravesso, talvez ela me distraia de um pensamento importante e, se me não obriga a mudar de caminho para a seguir a cavalo, sigo-a ao menos com um desejo de coração; se imediatamente por meio da minha já tão conhecida fraqueza, me não avisardes que me liberte desse espetáculo. E se eu me não elevar até Vós com alguma consideração, ou desprezando-o por completo ou passando adiante, ficarei loucamente absorvido.

Quando estou sentado em casa não me prende também, muitas vezes a atenção, um estelião(2) a caçar moscas, ou uma aranha enredando as que se atiram às suas teias? Acaso, por serem animais pequenos, a curiosidade deixará de ser a mesma? É certo que disto me aproveito para Vos louvar, ó Criador admirável e Coordenador de todas as coisas. Mas não é isso o que primeiro me desperta a atenção. Uma coisa é levantar-me após a queda, e outra coisa é não cair nunca.

De tais misérias está repleta a minha vida. A minha única esperança é a Vossa infinita misericórdia. Como o nosso coração é recipiente de todas estas misérias e porque traz essa imensa multidão de vaidades, muitas vezes as nossas orações interrompem-se e perturbam-se.

Enquanto na Vossa presença elevamos até junto de Vossos ouvidos a voz da nossa alma, não sei donde provêm tantos pensamentos fúteis, que se despenham sobre nós e nos cortam a atenção em coisa tão importante.

(1) I Jo. II, 16
(2) Espécie de lagartixa do Norte da África que no dorso apresenta manchas parecidas a estrelas.

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