Espírito da vida interior
Espírito de adoração eucarística expresso
pelos quatro fins do Sacrifício do Altar
(Adoração, Ação de graças, propiciação e Impetração)
por
São Pedro Julião Eymard
Mas qual o espírito que deve inspirar e dominar a vida interior dum Agregado do Santíssimo Sacramento?
É o próprio espírito da adoração eucarística, expresso pelos quatro fins do Sacrifício do Altar. A vida da alma interior é um prolongamento de sua oração: é justo, pois, que uma mesma seiva e um mesmo espírito animem a ambas.
Toda a vida, todos os pensamentos, todas as obras do Agregado deverão, pois, levá-lo a adorar, agradecer, reparar e orar, pela maior glória do Deus da Eucaristia. Devendo, por conseguinte, entranhar-se na natureza de cada uma dessas homenagens, dos atos e dos sentimentos que lhes são próprios, a fim de produzi-los com freqüência e de lhes adquirir a facilidade e o hábito.
I - Adoração
1.° - Adorar a Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento é reconhecê-lO, real, verdadeira e substancialmente presente, pelo humilde sentimento duma Fé viva e espontânea, que submete a fraqueza da razão humana à Divindade de tão sublime Mistério. Não devemos querer, como o Apóstolo incrédulo, ver ou tocar para convencer-nos da verdade de Jesus-Hóstia, mas esperar apenas, para podermos prostrar-nos aos Seus pés e ouvir esta palavra infalível e suave da santa Igreja, repetindo-nos, com São João Batista: "Eis o Cordeiro de Deus, eis aquele que apaga os pecados do mundo".
2.º - Adorar a Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento é oferecer-Lhe a homenagem soberana de todo o nosso ser: do corpo, pelo mais profundo respeito; do espírito, pela fé; do coração, pelo amor; da vontade, pela obediência; de todos os sentidos por um absoluto acatamento; em união com o louvor de todos os verdadeiros adoradores de Jesus Cristo, em união com as adorações da santa Igreja, da Santíssima Virgem, quando ainda na terra, e de toda a Corte Celeste. Prostrada ao pé do Trono do Cordeiro, essa Corte oferece-Lhe a homenagem de suas coroas, dizendo:
"É digno o Cordeiro que foi imolado e que nos remiu para Deus, com o Seu Sangue, fazendo de nós um reino para Deus Pai, é digno de receber o poder, a divindade, a sabedoria, a fortaleza, a honra, a glória e a bênção!" (Ap. 5,9- 10. l2 - Vulg.).
3.° - Adorar a Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento é adorar a grandeza, a ternura de Seu Amor pelos homens, que O levou a instituir e a perpetuar a divina Eucaristia, para ser sempre a Vítima de salvação, o Pão celeste e a consolação do homem peregrino na terra.
4.° - Adorar, finalmente, a Jesus Cristo sacramentado é fazer da divina Eucaristia o fim de nossa vida, o objeto final de nossa piedade, o alvo de amor de nossas virtudes e de nossos sacrifícios. Tudo pela maior glória de Jesus no Santíssimo Sacramento, tal deve ser a senha de toda a vida do adorador.
II- Ação de graças
Todo benefício requer ação de graças, e quanto maior for o benefício, maior também será a gratidão.
Ora, a Santíssima Eucaristia é o benefício dos benefícios do Salvador. Seu Amor encontrou o segredo de reunir todos os Seus bens, todas as Suas graças, todas as Suas virtudes, todos os Seus amores no dom régio da Eucaristia. É a quintessência de todas as Suas maravilhas, a glorificação sacramental de todos os Mistérios de sua Vida. É a Vida temporal e a Vida celeste do Salvador reunidas em seu Sacramento , a fim de ser, para o homem, fonte inexorável de Graça e de Glória, de santidade e de amor: a fim de que o amor do homem peregrino seja tão rico quanto o amor do habitante dos Céus.
Perante tal Bondade por parte de Jesus Cristo, qual será o reconhecimento do coração do homem, considerando-se a si mesmo como o fim da Eucaristia, da Encarnação, do Calvário! Como louvar dignamente tamanha Bondade? Que ação de graças jamais corresponderá a semelhante Dom? Que amor pagará tal soma de Amor? Faltam palavras adequadas ao pobre, sob a impressão dum dom régio, duma visita real, que o liberte da miséria e o coroe de honra e de glória; só dispõe de lágrimas de surpresa e de júbilo: a felicidade oprime-o, fá-lo desfalecer.
Tal seria também a nossa ação de graças pela divina Eucaristia, se nos fosse dado compreender melhor o seu imenso beneficio; se pudéssemos conhecer melhor, dum lado a Jesus Cristo, e do outro a nossa profunda miséria. O homem, a quem a bondade torna feliz, é levado pelo amor a dedicar-se ao seu benfeitor. Presta-lhe a homenagem de tudo quanto tem, qual Zaqueu; segue-O, como os Apóstolos; acompanha-o até o Calvário, como João e Madalena.
Mas isso ainda não lhe basta ao coração: a Santíssima Eucaristia será sua própria ação graças. Oferece-a ao Pai celeste em reconhecimento de lha ter dado.
Oferece a Jesus Cristo o próprio Dom de seu Amor, dizendo-Lhe com o profeta: "Que darei ao Senhor por todos os bens com que me sacia? Tomarei o cálice de salvação, e invocarei o Nome do Senhor" (Sl. 115,12- 13). Repete, com Maria, Sua divina Mãe, o cântico de êxtase de sua gratidão, e com o velho Simeão, o Nunc dimittis. Porquanto, depois da Eucaristia, só resta o Céu - e não é ela um Céu antecipado?
III- Propiciação
A propiciação é, em primeiro lugar, a reparação de honra, feita a Jesus Cristo pela ingratidão e pelos ultrajes de que é objeto em Seu Sacramento de Amor; é também a satisfação de misericórdia, implorando perdão e graça para os culpados.
1.º- Reparação de honra. Nosso Senhor Jesus Cristo é mais ofendido em Seu estado sacramental do que nos dias de Sua Paixão. Então foi humilhado, insultado, renegado e crucificado, mas por um povo que não O conhecia, por uns carrascos mercenários.
Aqui, Jesus é renegado pelos Seus que já O adoraram, que comungaram, que O reconheceram como o seu Deus. Jesus é humilhado por Seus filhos, a quem o respeito humano, a vergonha, o orgulho tornam apóstatas.
Jesus é insultado por servos a quem prodigalizou honras e bens, servos mercenários, a quem o hábito das coisas sagradas torna pouco respeitosos, profanadores, sacrílegos até, como outrora os mercadores do templo, expulsos por Jesus. Jesus é vendido por Seus amigos - e quantos Judas há no mundo! E vendemos Jesus a um ídolo, a uma paixão, ao próprio demônio. Jesus é crucificado por aqueles a quem tanto amou, e que se utilizam de Seus dons para insultá-lO, de Seu Amor para desprezá-lO, de Seu silêncio e de Seu véu sacramentais para encobrir o sacrilégio eucarístico: crime abominável! Jesus Cristo é então crucificado no comungante e entregue ao demônio que nele reina!
E esses horrendos sacrilégios se renovaram e se renovam ainda diariamente em todo o universo. Só Deus lhes conhece o número e a malícia. E ele, o Deus de Amor, será tratado assim até o fim do mundo!
Ora, ante tamanho Amor dum lado e tamanha ingratidão do outro, o coração do reparador se deveria fender, como o monte Calvário; seus olhos se deveriam tomar em duas fontes inesgotáveis de lágrimas e obscurecer-se como o sol à vista do deicídio; seus membros deveriam tremer de pavor e de horror, como tremeu a terra por ocasião da morte do Salvador.
Mas a esse sentimento de dor e de medo deve suceder outro, de expiação ao Amor de Deus, tão desconhecido e ultrajado. A alma deve fazer um ato de reparação e de amor à Vítima divina, como o fizeram o centurião, os carrascos e o povo contrito, como o faz a santa Igreja pelo seu Sacerdócio nos dias de luto e de crime. Como Maria, ao pé da Cruz, é preciso sofrer com Jesus, amá-lO por aqueles que não O amam, adorá-lO por aqueles que O ultrajam, mormente se entre esses ingratos e sacrílegos houver parentes ou amigos nossos. Mas a reparação se imporia com maior força ainda se, desgraçadamente, fôssemos nós mesmos culpados para com o Deus da Eucaristia, ou se fôssemos, pelo escândalo, causa de pecado por parte do próximo.
Ah! então a justiça pede uma reparação igual à ofensa. Será que nós, também, havemos de merecer a doce repreensão do Salvador?
"Vós, a quem amei com tanto Amor, a quem prodigalizei favores insignes, vós Me abandonais, Me desprezais, Me crucificais! Fácil seria compreender o esquecimento dos homens terrestres, a indiferença dos escravos do mundo, o desprezo mesmo daqueles que não têm fé, que nunca gozam das delícias de Meu Sacramento; mas vós, Meu amigo, Meu comensal, vós, esposa de Meu Coração!"
Tais sejam talvez as justas censuras do Coração de Jesus. A nós cabe abaixar a cabeça de vergonha e partir a alma de dor. Jesus, numa revelação a santa Margarida Maria, mostrou-lhe o Seu Coração ferido, coroado de espinhos, encimado por uma cruz, e dirigiu-lhe estas palavras:
"Tenho uma sede ardente de ser amado pelos homens no Santíssimo Sacramento, e não encontro quase ninguém que se esforce, segundo o Meu desejo, para Me desalterar, usando para comigo de alguma paga!"
2.° - Propiciação de misericórdia. A propiciação seria incompleta em se limitando à reparação. Embora satisfizesse a Justiça Divina, não satisfaria o Amor de Jesus. Que quer este Amor? Quer a salvação dos homens e o perdão dos maiores pecadores. Queria perdoar a Judas; pedia perdão para os seus carrascos, enquanto estes O insultavam. E, no Altar, não é sempre a Vítima de propiciação pelos pecadores? Sua Paciência em suportá-los, Sua Misericórdia em perdoar-lhes, Sua Bondade em recebê-los no regaço paterno, eis a vingança do Amor, eis Seu triunfo!
Nessa obra divina de perdão, Jesus carece, por assim dizer, dum associado, dum cooperador, que repita com Ele ao Pai a oração da Cruz: "Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem" (Lc 23,43). Carece duma vítima que acabe em si mesma o que falta a Seu estado de imolação sacramental: o sofrimento, o sacrifício efetivos. As almas só se redimem a tal preço - preço outrora pago no monte Calvário. Mas também quão sólidas, generosas, perfeitas, serão as conversões que, merecidas em comum por Jesus e pela alma reparadora, partirão do Tabernáculo divino! Ah! é principalmente aí que devemos procurar a redenção das almas, a conversão dos grandes pecadores, a salvação do mundo.
IV- Impetração
A impetração é o aposto lado eucarístico da oração, é o fruto natural da adoração, da ação de graças e da propiciação.
Este apostolado de oração honra a Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento como a Fonte divina de todo Dom e de toda Graça. Com efeito, a Santíssima Eucaristia é-lhe um tesouro inesgotável, um reservatório mais largo e mais profundo que o oceano. Jesus aí depositou as Suas virtudes, todos os Seus méritos, o preço infinito de Sua Redenção, colocando tudo isso à disposição do homem, mediante uma só condição: ele irá procurá-las, solicitá-las de Sua Bondade sempre pronta a prodigalizar-lhes os Seus bens.
Do fundo do Tabernáculo, Jesus clama a todos aqueles que sofrem, que estão necessitados, desgraçados:
"Vinde a Mim e Eu vos aliviarei". É sempre o bom Samaritano, o Médico divino de nossas almas, que há de curá-las de todas as chagas do pecado e que há de purificar (I) e santificar nossos corpos pelo Seu Corpo sagrado. É sempre o bom Pastor a amar Suas ovelhas, a nutri-las com Sua Carne e com Seu Sangue.
Mas está triste, pois há muitas ovelhas desgarradas, que o lobo raptador Lhe arrebatou. Chora-lhes a perda, chama-as, solicita-as. Não pode, porém, ir em sua busca. Então, para consolar o nosso bom Pastor, iremos nós procurá-las, conduzi-las a Seus pés pela força de nossas orações. E que alegria será para Jesus, que felicidade para nós!
Jesus, no Santíssimo Sacramento, é sempre o Bom Mestre que, unicamente, aponta o caminho do Céu, ensina a Verdade de Deus, comunica a Vida de Amor.
Mas no mundo Jesus não é mais conhecido. Os homens ignoram o Salvador que está no meio deles. É preciso dar a conhecer a Deus, mostrá-lO, como João Batista, trazer-Lhe os amigos, os irmãos, como André. O maior beneficio que se possa fazer a alguém é revelar-lhe o seu Mestre e seu Deus. É, sobretudo mostrando o Amor e a imensa Bondade de Jesus que o devemos tornar conhecido, pois é o meio mais eficaz de Lhe atrair os corações.
Jesus, no Santíssimo Sacramento, é sempre o Salvador em estado de imolação, oferendo-Se sem cessar ao Pai, como o fez na Cruz, pela salvação dos homens; apontando-Lhe Suas Chagas profundas e Seu Coração aberto, para obter o perdão do gênero humano.
É aos pés dessa Vítima adorável que o adorador deve orar, chorar, implorar ao Amor Crucificado que sensibilize o coração dos pecadores empedernidos, que quebre as cadeias tão duras e vergonhosas do vício, a pesar sobre tantos escravos do mundo; que rompa o véu que retém o judeu - povo que mereceu as primícias de Sua ternura - na cegueira e na infidelidade; que humilhe o orgulho do herege, a fim de que veja a Verdade e se submeta ao Seu império; que toque o coração do cismático, para que reconheça a sua mãe, a santa Igreja, e se venha lançar nos seus braços!
E esta Igreja, Esposa de Cristo, será sempre objeto das orações do adorador, em si, em suas instituições, em suas obras, em seu sacerdócio, em seu povo, em cada um de seus filhos; em tudo o que interessa à sua prosperidade, à sua perfeição e ao cumprimento de sua missão no mundo. E, reconhecendo humildemente sua própria insuficiência e a dependência absoluta em que se encontra para com Deus, o adorador reza por si mesmo. Conserva constantemente sua alma em um estado de oração, pela contemplação de sua indigência e da grandeza das bondades divinas. E assim manterá a alma sempre aberta, pronta a receber a efusão da Graça.
Tais as quatro grandes homenagens que encerra a adoração eucarística, e que devem animar e vivificar com seu espírito toda a vida do Agregado do Santíssimo Sacramento. Praticá-las fielmente, será praticar a vida interior em alto grau e estabelecer perfeitamente o Reinado de Jesus na alma.
(I) O Santo, em seu manuscrito, emprega aqui a palavra chastifiera, que é muito expressiva e traduz bem o seu pensamento.
(A Divina Eucaristia, escritos e Sermões de São Pedro Julião Eymard, volume 5, Loyola)
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