quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Os pecadores ou as almas?


Levanta-se a questão célebre — o que será mais útil e necessário: rezar pela conversão dos pecadores ou pela libertação das almas do purgatório?

A dizer a verdade, penso que não há escolha en­tre as duas obras. Ambas são necessárias e não é possível que quem ame a Nosso Senhor possa ficar indiferente à sorte de tantos miseráveis pecadores arriscados a se perderem eternamente. Que zelo não precisamos ter pela salvação das almas remidas pelo Sangue de Cristo! “Os pecadores estão arriscados a se perderem, e no caminho da eterna condenação, di­zem, e as almas estão já na segurança do céu. Sob este aspecto parece mais necessária realmente a ora­ção pelos pecadores. Todavia, sabemos que a glória de Deus exige a libertação das pobres almas, almas queridas, cuja sorte depende de nós somente. Que será delas sem nós? O pecador abusa da graça, está no tempo de poder lucrar méritos e graças e não aproveita, põe obstáculo aos nossos esforços, não aproveita muita vez o que fazemos por ele. Pela opi­nião de vários autores piedosos e teólogos, e entre outros o rei dos teólogos, Santo Tomás de Aquino com a sua autoridade de maior Doutor da Igreja, afirma que Deus acolhe com mais fervor a oração que Lhe fazemos pelos mortos do que a que Lhe di­rigimos pelos vivos.

Eis a razão porque às vezes não alcançamos gra­ças por nenhum outro meio senão pelo sufrágio das benditas almas do purgatório. Deus que tanto dese­ja a posse no céu das almas queridas, abençoa mil vezes tudo quanto fazemos por elas. Santo Agosti­nho, outro Doutor da Igreja, diz: “Nada há mais agradável ao Senhor que o alívio dos fiéis defuntos”. E o grande orador sacro Bourdaloue o prova com sé­rios argumentos: “Não há um apostolado mais belo, mais meritório. É mais belo e mais meritório ainda que a conversão dos pecadores, dos infiéis e dos pagãos”.

Trabalhar pelas almas do purgatório é ter a doce certeza de que não trabalhamos em vão, porque nada se perde de nossos sufrágios. Os pecadores resistem à graça. As santas almas aproveitam todos os nossos sufrágios. No purgatório, diz o Pe. Faber, não se co­nhece a ingratidão.

Tudo será retribuído magnificamente um dia aos benfeitores.

O mais prático, então, será trabalharmos com grande zelo pela conversão dos pecadores, fazermos um bom apostolado, um generoso sacrifício para le­var almas a Nosso Senhor e oferecermos todos os méritos desta obra divina, desta obra de caridade es­piritual pelas almas do purgatório. Está solucionada a questão, sem inúteis e sutis discussões. — O mais perfeito e o melhor, é trabalhar pela conversão dos pecadores em sufrágio das almas do purgatório. E em nossas orações fazermos a mesma coisa. Unir nosso grito de compaixão pelas almas sofredoras, ao grito de compaixão pelos pecadores.



Uma discussão célebre


São Luiz Bertrão, dominicano, celebrava frequen­temente a Santa Missa pela conversão dos pecado­res, e raramente o fazia pelas almas do purgatório.

Um dos Irmãos da Ordem lhe perguntou porque assim procedia.

— Ora, meu irmão, as almas do purgatório têm já garantida a salvação eterna e os pecadores, coita­dos, estão expostos à eterna condenação do inferno.

— Sim, é verdade, responde o Irmão, mas, há outra consideração a fazer e bem séria. Suponhamos que dois pobres vos pedem esmola. Um, é estropiado e paralítico, absolutamente incapaz de se mover por si, não pode ganhar a vida, é-lhe impossível traba­lhar. O outro, ao invés, é moço, forte, está na misé­ria e implora a vossa caridade. A quem dareis de preferência a vossa esmola?

— Ao que não pode trabalhar... Responde o santo.

— Pois bem, meu caro padre, as almas do pur­gatório estão neste caso. Nada podem fazer por si. Para elas acabou o tempo da penitência e do mérito, da oração e das boas obras. Dependem de nós, da nossa caridade. O pecador, neste mundo, pode tra­balhar para sua salvação, tem os meios e a graça à sua disposição. Não vos parece, meu padre, que as almas do purgatório sejam mais necessitadas que os pecadores, das nossas orações?

São Luiz Bertrão meditou seriamente nas razões do Irmão e dali em diante orava pelos pecadores, sim, mas veio mais em auxílio das pobres almas do pur­gatório.

Realmente, neste mundo o pecador pode traba­lhar pela sua salvação e abusa da graça. É um pobre que necessita de esmola, sim, mas porque não trabalha. As almas são os pobres sem ninguém por elas. Não podem mais lutar nem merecer como nós. Para elas passou o tempo de lucrar. Estão entregues à Divina Justiça.

Todavia, creio que nesta matéria só Deus pode julgar.

A razão de Santo Tomás de Aquino é bem séria: os sufrágios pelos mortos são mais agradáveis a Deus que os que fazemos pelos vivos, porque aqueles se acham em mais premente necessidade e não podem se valer a si mesmos.

Os Santos que tiveram contato com o purgató­rio em revelações particulares, puderam nos dizer o quanto sentiram a necessidade de orar e sofrer e su­fragar por todas as maneiras as pobres almas sofre­doras. Não cometamos o erro de abandonar a oração pelas almas, sob o pretexto de que os pecadores têm mais necessidade e estão arriscados à condenação eterna.


Razões para socorrer as almas do purgatório

Estas razões são múltiplas e já as recordamos aqui em outros lugares. Sugerimos algumas outras. A primeira, o amor de Deus. Se amamos a Deus não havemos de querer vê-lo glorificado e amado cada vez mais pelos seus eleitos? Onde se encontra a per­feição do Amor? No céu. Uma alma salva dá tanta glória a Deus e vai para o seio do Amor eterno! Tudo que fazemos pelo nosso próximo glorifica a Deus.

Nosso Senhor mostrou o valor das obras de ca­ridade quando disse que seria feito a Ele mesmo o que fizermos ao próximo. Que maior obra de cari­dade que socorrer as pobres almas, como já vimos na opinião de São Francisco de Sales? Ora, o que mais glorifica a Deus é a alma na posse da eterna glória. Não é pois uma necessidade para quem ama a Deus desejar ver mais amado no céu por algumas almas salvas do purgatório? Se há muita alegria no céu quando se converte um pecador, há maior alegria ain­da quando um Justo entra na Glória. Eis mais uma razão para trabalharmos pelas almas do purgatório — a glorificação dos eleitos.

E depois a gratidão. Temos o dever de justiça e de gratidão para com os mortos. Havemos de so­corrê-los porque muitos deles são nossos pais, pa­rentes, amigos, súditos, e talvez muitos estejam sofrendo no purgatório por nossa causa, por nosso mau exemplo, por algum escândalo que lhes demos. Só Deus sabe quanta repercussão têm nossas faltas! Não é um dever orar pelos mortos? Cuidemos da con­versão dos pecadores, mas não nos esqueçamos des­te dever de justiça e de caridade. Dever muito mais grave do que estamos pensando.

Não hesitemos — vamos dar nossas preferên­cias ao sufrágio pelas santas almas, embora nunca deixemos de orar, trabalhar e sofrer pelos pobres pecadores. E demais, a devoção às almas é muito proveitosa e santificadora e concorre para nosso pro­veito espiritual, nos santifica e nos torna mais aptos para rogar e trabalhar pelos pecadores.

Tivéssemos sempre o purgatório diante dos olhos e não viveríamos assim, na tibieza, no orgulho, na sensualidade, numa vida espiritual tão relaxada!

Realmente, quem pensa, quem medita seriamen­te na Justiça Divina dos tormentos da expiação além-túmulo, vê, à luz das chamas do purgatório, como é horrendo o pecado, e como é preciso ser puro, santo, e trabalhar nesta vida para obter o mérito das boas obras e se preparar para a eternidade!


Exemplo

Salvo pelas almas do purgatório


Nos arredores de Roma vivia um moço cuja vida de escândalos e de pecados era bem conhecida de todos. Todavia, o infeliz, apesar de tão pecador, con­servava a fé e não deixava a devoção de sufragar quanto podia as almas do purgatório. Mandava cele­brar Missas por elas, rezava e dava esmolas aos po­bres nesta intenção. Era a única prática de piedade em meio de tantos pecados. Naturalmente, este moço com seu temperamento arrebatado e valentão, tinha grande número de inimigos, e andavam estes plane­jando matá-lo em um momento oportuno. Sabiam os inimigos que havia de passar ele pela estrada de Trivoli e preparam-lhe uma emboscada. Ao se aproxi­mar da estrada, numa encruzilhada perigosa, a ca­valo, deu com um pobre moço enforcado numa árvo­re. Era um criminoso condenado à morte, cujo cadá­ver ainda pendia para escarmento dos bandidos. O jovem tinha costume de nunca deixar de rezar pela alma de quantos via mortos. Parou, desceu do cava­lo, ajoelhou-se diante do cadáver e rezou por aquela alma. Uma voz misteriosa se ouviu: desce e corre, porque te perseguem! Assustado, desceu, correndo pela estrada. Os inimigos descarregaram as armas e como viram o cadáver do enforcado caído, julgaram ser o jovem, e fugiram às pressas.

Uma voz se fez ouvir, então, ao jovem: meu amigo, aquela descarga deveria te matar e lançar tua alma pecadora no inferno. A misericórdia de Deus te salvou pela caridade que praticas para com as al­mas do purgatório. Elas te socorreram. Muda de vida enquanto é tempo.


O moço, todo contrito e sinceramente arrependi­do da sua má vida, resolveu deixar o mundo; entrou numa ordem austera, fez penitência e levou vida san­ta até o fim dos seus dias. — (Citado por Rossingnoli, 5.ª maravilha — e J. B. Manni, Sacra Trig. Disc. 12.).

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