O amor, como já dissemos, não é outra coisa senão o movimento e inclinação do coração para o bem por meio da complacência que se tem nele de sorte que a complacência é o grande móbil do amor, como o amor é o grande movimento da complacência.
Eis como se faz este movimento para Deus : A fé ensina-nos que a Divindade é um abismo incompreensível de toda a perfeição, sumamente infinito em excelência, infinitamente sumo em bondade.
Esta verdade que a fé nos ensina, consideramo-la atentamente pela meditação, contemplando a imensidade de bens que há em Deus, ou todos simultâneamente num agregado de todas as perfeições, ou em separado, considerando as suas excelências uma após outra, como, por exemplo, a sua omnipotência, a sua sabedoria, a sua bondade, a sua eternidade, a sua infinidade. Ora quando conservamos o nosso entendimento muito atento à grandeza dos bens existentes neste divino objecto, é impossível que a nossa vontade não sinta complacência nesse bem ; e então usamos da liberdade e da autoridade que temos sobre nós mesmos, levando o nosso próprio coração a robustecer e a aumentar a sua primeira complacência com atos de aprovação e de regozijo. Oh! Diz então a alma devota, como sois belo, meu Amado, como sois belo! Vós sois desejável, sois o mesmo desejo ; tal é o meu Amado, ele é verdadeiramente meu amigo, filhas de Jerusalém, Oh! Seja para sempre bendito o meu Deus por ser tão bom! Ah ! quer morra quer viva, sou imensamente feliz por saber que o meu Deus é tão rico de todos os bens; que a sua bondade é infinita, e a sua infinidade tão boa.
Assim, aprovando o bem que vemos em Deus, comprazendo-nos nele, fazemos um ato de amor a que se dá o nome de complacência, porque nos comprazemos no gozo divino infinitamente mais do que no nosso próprio. É este o amor que dava tanta satisfação aos Santos, quando narravam as perfeições do seu Amado e lhes fazia dizer com tanta suavidade que Deus era Deus, Ora sabei, diziam, que o Senhor é Deus, ó Deus! Meu Deus, vós sois o meu Deus; Eu disse ao Senhor, sois o meu Deus e o Deus do meu coração, e o meu Deus é eternamente o quinhão da minha herança, Ele é Deus do nosso coração por esta complacêncía porque, por ela, o nosso coração o abraça e se apodera dele ; ele é nossa herança porque, por este ato, gozamos dos bens que estão em Deus, e, como duma herança, deles tiramos todo o gozo e contentamento. Por esta complacência, como que assimilamos espiritualmente as perfeições da Divindade, porque as tornamos nossas e as infundimos no próprio coração.
Assim como as ovelhas de Jacob tiravam das cores da fonte onde bebiam as cores dos seus cordeirinhos, assim também uma alma cativa da amorosa complacência que experimenta ao considerar a Divindade, e nela uma infinidade de excelências, atrai ao seu coração as maravilhas e perfeições, que contempla, e as torna suas pela satisfação que nelas encontra.
Oh meu Deus ! que alegria teremos no Céu, Teotimo, quando virmos o Amado de nossos corações como um mar infinito, cujas águas são unicamente perfeição e bondade! Então, como o veado que, perseguido, pára junto duma clara fonte e haure a frescura das suas águas, assim os nossos corações, depois de tantas ansiedades e desejos, chegando à fonte viva e salutar da Divindade, haurirão, pela sua complacência, todas as perfeições deste Bem-amado, e terão nelas perfeito gozo, pelo prazer que sentirão, ao saciarem-se de suas imortais delícias.
Desta forma o querido Esposo entrará em nós como em seu leito nupcial, para comunicar à nossa alma a sua eterna alegria, segundo Ele mesmo diz: que, se guardarmos a santa lei do seu amor, virá e fará em nós a sua morada. Eis o doce e nobre fruto do amor que, sem desbotar o colorido do Bem-amado, apropria-se das suas cores ; sem o despojar, reveste-se do seu vestido : sem nada lhe tirar, toma tudo o que Ele possui ; e, sem o empobrecer, enriquece-se com seus bens ; do mesmo modo que o ar toma a luz sem enfraquecer o esplendor natural do sol, e o espelho a graça do rosto sem diminuir a do homem que nele se mira.
Tornaram-se abomináveis como as coisas que amaram, diz o profeta, falando dos maus ; o mesmo se pode dizer dos bons, que se tornaram amáveis como as coisas que amaram. Vêde o coração de Santa Clara de Montefalco ; achou tanto prazer na meditação da Paixão do Salvador e na meditaçíio da Santíssima Trindade, que desse modo atraíu a si todos os estigmas da Paixão, e uma admirável representação da Trindade, tornando-se desta forma semelhante àquilo que amava. O amor que o grande apóstolo S. Paulo tinha pela vida, morte e paixão de Nosso Senhor foi tão grande que atraíu ao coração dele a própria vida, morte e paixão do divino Salvador, de modo que estas lhe ocupavam totalmente a vontade pelo amor, a memória pela meditação e o entendimento pela contemplação.
Mas qual foi o canal, o instrumento que trouxe o doce Jesus ao coração de S. Paulo? O canal da complacência, como ele mesmo declara, dizendo: Nunca Deus permita que me glorie senão na cruz de Nosso Senhor jesus Cristo ; porque se bem considerardes, entre glorificar-se e comprazer-se em alguém, entre ter glória ou prazer em alguma coisa, há apenas esta diferença, que aquele que tem glória numa coisa, junta a honra ao prazer, porque não há honra sem prazer, embora possa haver prazer sem honra. Esta alma, pois, tinha uma tal complacência e sentia-se tão honrada com a bondade divina que resplandece na vida, morte e paixão do Salvador, que não sentia prazer algum senão nesta honra ; isso o levou a exclamar : Nunca Deus permita que me glorie, senão na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, como também disse que não vivia ele mas jesus Cristo nele.
São Francisco de Sales - Tratado do Amor de Deus
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