(Gustave Caillebotte) |
Parece que nas atividades lúdicas não pode haver alguma virtude:
1. Com efeito, afirma Ambrosio: “o Senhor diz, ‘Ai de vós, os que rides, porque chorareis!’. Penso, então, que é preciso evitar não só os divertimentos exagerados, mas todos”. Ora, o que pode ser praticado virtuosamente, não deve ser evitado de todo. Logo, não pode haver virtude alguma nos jogos.
2. Além disso, “a virtude é algo pelo qual Deus age em nós, sem nós”, como foi dito antes (I-II, q. 55, a. 4). Ora, Crisóstomo diz: “Não é Deus que nos inspira ao jogo, mas o diabo. Ouve o que, certa feita, aconteceu com os que se divertiam: o povo sentou para comer e beber e levantou-se para jogar”. Logo, não pode haver virtude nos jogos.
3. Ademais, diz o Filósofo que “as atividades lúdicas não se ordenam a nenhum outro fim”. Ora, para haver virtude é preciso que se aja por alguma finalidade, como ele mesmo o demonstra. Logo, não há virtude alguma nos jogos.
EM SENTIDO CONTRÁRIO, diz Agostinho: “Quero, enfim, que te poupes, pois convém ao sábio que afrouxe, de vez em quando, o rigor de sua aplicação ao dever”. Ora, esse relaxamento mental em face das próprias obrigações acontece mediante palavras e atividades recreativas. Cabe, assim, ao sábio e ao virtuoso recorrer a elas, vez por outra. O Filósofo, aliás, fala da eutrapelia, como uma virtude associada aos jogos, que poderíamos traduzir por jovialidade.
RESPONDO. Assim como o homem precisa de repouso para refazer as forças do corpo, que não pode trabalhar sem parar, pois tem resistência limitada, proporcional a determinadas tarefas, assim também a alma, cuja capacidade também é limitada e proporcional a determinadas operações. Portanto, quando realiza certas atividades superiores à sua capacidade, ela se desgasta e se cansa, sobretudo porque nessas atividades o corpo se consome juntamente, pois a própria alma intelectiva se serve de potências que operam por meio dos órgãos corporais. Ora, os bens sensíveis são conaturais ao homem. Por isso, quando a alma se eleva sobre o sensível para se dedicar a atividades racionais, gera-se aí certa fadiga psíquica, seja nas atividades da razão prática, seja nas da razão especulativa. Mas a fadiga é maior quando o homem se entrega à atividade contemplativa, porque é assim que ele se eleva ainda mais sobre as coisas sensíveis, embora em certas ações exteriores da razão prática possa haver, talvez, um cansaço físico maior. Em ambos os casos, porém, ocorre o cansaço da alma, tanto maior quanto mais se entrega às atividades da razão. Ora, assim como a fadiga corporal desaparece pelo repouso do corpo, assim também é preciso que o cansaço mental se dissipe pelo repouso mental. O repouso da mente é o prazer, como acima se explanou ao se falar das paixões (I-II, q. 25, a. 2; q. 31, a. 1, ad 2). Daí a necessidade de buscar remédio à fadiga da alma em algum prazer, afrouxando o esforço do labor mental. Nesse sentido, lê-se nas “Conferências dos Padres”, que João Evangelista, quando alguém se escandalizou de o ver jogando com os discípulos, mandou um deles de arco na mão que disparasse uma seta. Depois que ele repetiu isso muitas vezes, perguntou-lhe se poderia fazê-lo sem parar, ao que o outro respondeu que, se assim procedesse, o arco se quebraria. Então, o santo observou que, da mesma forma, a alma se romperia se permanecesse sempre tensa.
Essas palavras e ações nas quais não se busca senão o prazer da alma chamam-se divertimentos ou recreações. Lançar mão delas, de quando em quando, é uma necessidade para o descanso da alma. E é o que diz o Filósofo, quando afirma que “em nosso dia-a-dia, é com os jogos que gozamos de algum repouso”. Por isso, é preciso praticá-los de vez em quando.
Três cuidados, porém, há de se ter nessa matéria. O primeiro e mais importante é que, em nossos divertimentos, não devem constar atos e palavras vergonhosos ou nocivos. Nesse sentido é que túlio fala de “certas espécies de brincadeiras grosseiras, insolentes, indecentes e obscenas”. A segunda cautela a tomar é que não se perca totalmente a gravidade da alma. Por isso, recomenda Ambrósio: “Acautelemo-nos, ao querer relaxar mentalmente, para não perdermos toda a harmonia formada pelo concerto das boas obras”. E Túlio declara ainda que, “assim como não permitimos às crianças qualquer tipo de jogo, senão os que constituem uma recreação honesta, assim também em nosso divertimento deve brilhar a luz de um espírito virtuoso”. Em terceiro lugar, importa atentar para que, como em todas as demais atividades humanas, os jogos se coadunem com as pessoas, com a ocasião e com o lugar e se organizem de acordo com as outras circunstâncias devidas, ou seja, que sejam “dignos do momento e do homem”, na expressão de Túlio, na mesma obra supracitada.
Tudo isso se ordena pela regra da razão. Ora, o hábito que atua conforme a razão é uma virtude moral. Portanto, pode haver uma virtude que se ocupe com os jogos, virtude que o Filósofo denomina “eutrapelia”. E quem a pratica é chamado de eutrapélico, ou “de jeito bom”, porque facilmente ajeita palavras e atos em diversão repousante. E essa virtude, por isso mesmo que refreia a pessoa para que evite excessos nos jogos, está incluída na modéstia.
Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:
1. Como foi exposto antes, qualquer brincadeira deve se adequar às pessoas e aos assuntos tratados. É o que Túlio sublinha, ao dizer que, para um auditório cansado, “não é inútil contar o orador algo de novidade ou de causar riso, a não ser que a seriedade do assunto tratado elimine a possibilidade de se brincar’. Ora, a doutrina sagrada versa sobre matéria de extrema seriedade, conforme se diz no livro dos Provérbios: “Ouvi, é muito importante o que vou dizer”. Por isso, Ambrósio não exclui sempre a brincadeira da vida humana, mas sim da doutrina sagrada e, antes do texto citado pela objeção, ele dissera: “Embora, às vezes, os jogos sejam honestos e agradáveis, contudo são incompatíveis com a norma eclesiástica, pois como poderemos admitir o que nas Escrituras não encontramos?”
2. Se deve interpretar essas palavras de Crisóstomo como alusão aos que se entregam aos jogos de forma desordenada e, principalmente, aos que não têm outro objetivo senão o prazer do jogo. Deles assim se diz no livro da Sabedoria: “A seus olhos, nossa vida é um jogo”(15, 12). Contra isso, escreveu Túlio: “Não fomos gerados pela natureza para sermos vistos como destinados aos divertimentos e aos jogos; mas, antes, à austeridade e a estudos mais sérios e mais importantes”.
3. As atividades lúdicas, em si mesmas, não se destinam a nenhum fim. Mas o prazer que se encontra nelas está voltado à recreação e ao repouso espiritual. Nesse sentido, é lícito praticá-las, desde que moderadamente. Donde estas palavras de Túlio: “Certamente, podemos nos entregar a jogos e brincadeiras, mas, como no sono e em outros descansos, só depois de satisfeitas as nossas obrigações graves e sérias”.
(Suma Teologica, II-II, 168, 2)
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