Frei Zaqueu (freizaqueu@gmail.com): Este artigo o dedico de forma especial às Ordens Contemplativas e de Clausura, escândalo de um mundo escandaloso e escandalizável.
Maria é a obra-prima por excelência do Altíssimo, cuja posse e conhecimento Ele reservou para si. Maria é a Mãe admirável do Filho o qual quis humilhá-la e escondê-la durante a vida para favorecer a sua humildade. Para este fim tratava-a pelo nome de “Mulher” (Jo 2, 4; 19, 26), como a uma estranha, embora no seu Coração a estimasse mais do que a todos os anjos e a todos os homens.
(Tratado da Verdadeira Devoção)
O homem nunca se nutriu tão visceralmente do desejo de ser visto, ser notado, ser quisto ou comentado de alguma maneira, qualquer que seja, pelo motivo que seja. O comprovam o estado islâmico, o pcc e certo vulto eneadáctilo. O comprovam o corpo recém atropelado, agora por segunda vez pelas câmeras celulares de amadores jornalistas, ou ainda o escovar de dentes e a hora das necessidades íntimas tornados notícia do dia em redes sociais. O homem deseja ser visto pela necessidade de ser notado, e ser notado pela necessidade de ser quisto. Porque já não se vê, já não se nota, e não se quer. Isto posto, vamos ao que interessa.
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Relendo estes dias o Tratado de S. Luis de Montfort, o extrato acima chamou-me a atenção por um detalhe pequeninamente relevante, e este é que Deus, pelo verdadeiro amor, preserva aos que ama pela omissão. Ele, não raro, os omite, esconde, apaga os holofotes, abrigando-os assim “sob suas asas” dos perigos que diuturnamente os ronda. E considerando a matéria de que somos feitos e de que matéria o demônio o é, isso não nos deveria entupir de barbitúricos, fazer com que socássemos uma bala na cabeça ou na melhor das hipóteses tornar-nos bulímicos, muito ao contrário. Ocorre que à maioria dos homens modernos – e ao usar homens recordo, como elementarmente o fez em dada entrevista o ainda hoje necessário Eneias Carneiro à jornalista Marília Gabriela, que o termo é plural genérico; em que pese as transitórias presidentas que passam atravancando os caminhos da gramática e de milhões de brasileiros – vem surgindo algo curioso digno de atenção: nunca o paladar foi tão alterado com o doce já bem amargo, e o amargo tão adocicado. E vamos metendo dedo na goela para acabar com o que não existe.
Dada a nada desprezível quantidade de complexos que incidem sobre o homem moderno, penso que todos possuam uma raiz comum. Com essa onda de morte ao Criador rondando a um certo tempo, a criatura não vem fazendo outra coisa que tapar simultaneamente nariz e boca obstruindo assim o livre trânsito do que lhe confere a vida e o mantém de olho aberto, mas piscando. E como nada se pode destruir se não for substituído, como dizia Napoleão, lógico é que ao tentar preencher o lugar do Moribundo dar-se-á com a cara no muro, porque se existe algo essencialmente necessário este é a Essência por excelência, recordando a um Boi mudo[1] medieval mais eloquente que as gralhas e hienas modernas. Mas o homem (plural genérico) não aprende, e como é pouco inteligentemente mais empacado que a mula (que quando empaca é por um bom motivo) vai tentando a todo custo e de modo patético substituir o Insubstituível, contingenciar o Necessário. Porém, como 2 + 2 não são nem 3,9 ou 4,1, não serão plásticas ou notas de rodapé que darão jeito. Não adianta querer evoluir neste sentido como não adianta botar a si mesmo, a namorada provocante, o vizinho sarado, a meretriz de luxo, o trabalho frenético, o Padre simpático, as mil e uma diversões ou o programa do Amaury Júnior como ersatz do Criador, cuja existência o comprova a existência de ateus. Pode-se ainda tentar insistir com viagens, baile funk, tabefe no mendigo da rua, horóscopo do dia, dilações do sr. Dawkins, sessão do descarrego, maracanã na segunda-feira ou gurus sob encomenda + novela das 7[2], e é aí que a coisa degringola. Na esteira do santo bispo de Hipona, ao se preterir o Doador pelos bens doados, ainda que legítimos, mantendo-se a devida distância da Essência, perde-se por inteiro uma coisa chamada identidade, sem chance de se obter uma segunda via; ou se cai em um crônico caso de amnésia existencial: “já não se sabe de onde veio ou para onde foi destinado. Melhor dizer, de Quem e para Quem..”[3]. Por isso o “Deus nos acuda”, uma vez que a medida da decepção é a da expectativa. E a cada novo paliativo, nova frustração. Não se acha mais o que agrade, pois o Objeto do agrado se inumou mais fundo que os sete palmos estipulados. Até que se dê conta de que tudo traz consigo o prazo de validade. A insatisfação vem simplesmente porque fomos feitos imagem e semelhança, e uma vez que “fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração inquieto está enquanto não repousa em Ti”[4]… “para onde fugirei?”[5].
Tenho a impressão de que a compulsão de ser vistos, comentados e quistos diária e freneticamente vem de mãos dadas a certo medo de escuro e solidão infantis nas crianças cuja inocência e pureza fazem parte do passado. Naquelas cujo Amigo Invisível (também conhecido como Anjo da Guarda) cedeu lugar ao Hellboy e seus comparsas. A questão é que já não se suporta estar na companhia da boa solidão, vivida e decantada em prosa e verso pelos santos. Porque já não cogitam os ego cogito sum modernos uma solidão que seja boa e benéfica, por isso receitada.
Deus, como dito acima, não poucas vezes nos deixa escondidos para nos manter preservados. Ou retira talentos, bens e dons para não perdermos coisa maior, ao modo dos pais que ao retirar a faca da mão de seus pequenos não lhes lesam, preservam. Ou dos pais que ao dar o devido corretivo no menino que muito insiste em brincar de boneca não lhe retira os direitos humanos, o humaniza. E nisto a máxima do santo de Montfort vem (muito) bem a calhar. A Virgem Maria, a mais bela e perfeita criatura, foi também (justamente por isso) a mais escondida, ainda que dela seja difícil se pensar em extração de dons. Muito simplesmente porque o muito belo muito se cobiça e nem sempre com a melhor das intenções.
Santa Teresa de Jesus certa vez reclamou da forma de tratamento dispensado por Jesus Cristo aos seus amigos dizendo à Sua Majestade – como O tratava – que por isso Ele os tinha em tão pouco número. Ao que respondeu o bom Mestre nada afeito a quantitativos: “É assim que trato a quem amo”. Não necessariamente nessa ordem foi a conversa, mas que nos sirva a moral da história. E essa moral é a de que a forma do tratamento divino se dá –não podia deixar de sê-lo – de forma muito justa, afinal poucos desejam abrir mão do supérfluo em proveito do essencial, que naturalmente é “invisível aos olhos” e custa caro.
O que recobra o magnifico exemplo da jovem Mãe que, antes, durante e depois, a si preferiu o escondimento por saber que muita luz ofusca e mesmo cega. Optou pela solidão repleta de presença porque tempranito entendeu que “só Deus basta”. E elegeu dar luz à Luz ao querer brilhar por conta e risco, posto ser é efêmero e fugaz. Maria foi assim uma menina e uma mulher incomum, tornando-se por isso modelo de felicidade. Ouçamo-la todos os bulímicos, carentes, violentos, afetados, afeminados, autossuficientes, revoltados, maliciosos, covardes, ignorantes e… soberbos; em uma palavra: nós. E preferencialmente antes de ser ainda suicidas. Seu ensino é simples: fazei o que Ele manda, como Ele o fez. De outra forma: que não há precisão de aparecer, basta com fazer reaparecer o que fizemos desaparecer e então desaparecerá o medo de não aparecer. Não ser visto ou notado, não ser noticiado ou quisto, ou ainda aplaudido e recompensado será então o menor dos problemas e o maior dos prazeres. Utopia? Quimera? Masoquismo? Visitemos um verdadeiro Claustro contemplativo; ou uma verdadeira Missa em latim. Rezemos com simplicidade honesta e deixemos selfies e facebooks uma semana que seja. E teremos a resposta.
Digo isto porque há o escondimento e há as razões. O primeiro pode ser quisto e buscado por várias segundas. Por isso há o escondimento do eremita e o do avestruz; há o da recatada, que se esconde da coisificação e da superficialidade, e o da exibida, que se oculta da virtude e da dignidade; como há ainda o medo do pecado e o da polícia, conduzindo obviamente a distintos claustros. Mas é ainda o santo de Montfort quem atesta, ao que busca o escondimento para se ver livre da escravidão travestida de liberdade, que jamais se estará sozinho neste esconderijo de Deus, posto estar situado em um Seio:
Santo Agostinho… afirma que os predestinados, para se tornarem conformes à imagem do Filho de Deus, vivem neste mundo escondidos no seio da Santíssima Virgem. Lá são guardados, alimentados, sustentados e criados por esta boa Mãe, até que Ela os gere para a glória depois da morte. Este é propriamente o dia do seu nascimento, pois é assim que a Igreja chama a morte dos justos.
Neste bem-aventurado Seio não há “luzes, câmera e ação” ou colunas sociais, porque a lógica é bastante outra. Ali, mais aparece quem mais se esconde, menos cresce quem menos diminui, mais se exalta quem menos se ensoberbece. Nele, por isso, não são necessárias selfies, mãos aplaudindo, caretas ovacionando ou kkk’s. Flores, corações e músicas romanticamente tristes ou tristemente românticas são perfeitamente dispensáveis. Manchetes, flashes, comentários e palavras cheias de sentido algum, tudo se torna muito bem descartável; pois – para ficar em um exemplo – fosse isto solução para o desespero, a tristeza, o sem sentido ou o crescente desejo não de encontrar, mas de sumir do mapa, muitas estrelas não teriam sumido do mapa hollywoodiano ou global, caído como relâmpagos, apagadas por todo o sempre (que o bom Deus tenha piedade de sua alma) amém.
O sábio aconselha ter mil como amigos, mas somente a um abrir o coração[6]. Buscamos no entanto com certo desespero escancarar o coração ao mundo sem importar uma única amizade fiel e desinteressada. Nisto há, penso, certa desconfiança de que já não haja em nós algo que nos agrade, porque esquecemos que somos casa, lar, abrigo. Mais: que esse lar foi pré-projetado para dar abrigo a Quem o projetou, elevando-o da condição de casa a de templo. Mas com o esquecimento, o que antes era casa vira depósito, não raro de lixo. Quiçá por isso já nos custe preservar casas, prédios, cidades, estados, países e mesmo o planeta, nossa casa comum…
Deus ao se fazer Homem não teve medo de ficar só, não só em função de sua autopreservação como Homem, mas também da nossa, dando-nos o exemplo. Não por acaso passou três décadas escondido com a Mãe e só três anos aberto ao entorno, bastando somente três horas na cruz para consumar tudo e salvar a Humanidade, como ouvi recentemente de um sacerdote de Deus.
Triste observar como cresceu, com a tecnologia, o progresso e as heresias, a solidão humana. À espantosa proporção de sorrisos distribuídos em selfies vem diametralmente oposta a infelicidade dos sorridentes. Tive neste sentido a oportunidade de presenciar um fato repleto de semântica e semiologia. Estava em um passeio em local público quando, junto a um grupo de gente simples, separam-se em minha direção duas mocinhas do grupo ainda na idade da infância, com suas simples, pobres mas pouco decente indumentárias. Pararam a uma distância de uns dois metros. A maior delas tira então do bolso de seu shorts um celular notadamente menos simples e pobre que sua (pouca) roupa para uma selfie com a menor. As caretas e os sorrisos notoriamente artificiais produzidos para a ocasião e que duraram o tempo de um clic manifestaram, através daquelas crianças, uma categoria de felicidade até então para mim desconhecida ao menos na forma do neologismo que me vem à mente, o da “felicidade fotográfica”. O que quero dizer é que concluído o registro o fake sorriso se desfez numa fração de segundos, dando lugar ao que já estava ao modo de estado natural: semblantes insatisfeitos, enfadados, dotados de uma rudeza, feiura e tristeza incomuns às tenras fisionomias tão caras ao Redentor. Eram já crianças, ao que indicava, automatizadas e insensíveis ao bem, ao belo e ao verdadeiro. Mas algo ficou patente: ali estavam duas crianças carentes de serem vistas, notadas, quistas, ainda que por um objeto… que mui provavelmente equivaleria a umas boas cestas básicas em suas mesinhas deixando-as assim um pouco mais feliz ainda que sem selfies.
Estamos em que o mundo, a carne e o demônio desejam e oferecem purpurina, fantasia, arrepio e histerismo, em uma intensidade maior que de costume. Que eles nos sorriem com seus dentes de hiena. Que onde mais procuramos companhia, existem interesses. Que as presenças são a cada dia mais efêmeras e estéreis, feitas somente para a alegria não para a tristeza; apenas para a saúde não para a doença; exclusivamente para a riqueza não para a pobreza. Solitários quanto menos solidários, mendigando olhos que já não se veem a si mesmos, sorrisos que já não sorriem para si ou o sorriem à velocidade de um flash… E nisso estamos.
Mas como o tema é este e não outro deixemos que seja Ela a apontar à Luz ao fim do túnel: a Virgem com seu solitário sorriso pleno de solidariedade; sua laetitia manifestamente oculta; sua plena satisfação anônima e seu silêncio mais eloquente que o mundo. É tempo – enquanto o temos – de olhar à esta Virgem que por ter-se ocultado e permitido ser ocultada hoje é vista, notada e quista – e notícia! –, ainda que disto nunca fizesse questão. Porque a Menina optou por diminuir para que o Menino crescesse. Porque apontou ao Filho, da forma que o faria também um seu cavernoso e santo parente nada dado a suscetibilidades humanas. Porque abriu o coração à Vida, cobrindo seu corpo santo compreendido como templo e abrigo. E assim compreendendo, não teve dificuldade em perceber que todo hogar destelhado, com portas e janelas escancaradas, faz com que seus habitantes mais facilmente se molhem e sejam roubados. Daí que navegar não é assim tão preciso: religar é preciso.
Talvez hoje careçamos como nunca suplicar a que o bom e silencioso Deus, por isso, nos livre de nós, nossos maiores inimigos, devolvendo-nos assim a nós a dignidade perdida, a de seus maiores amigos.
Causa nostrae laetitia: ora pro nobis!
Em 16 de janeiro do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2017.
Frei Zaqueu
Notas
[1] Santo Tomás de Aquino, monge dominicano. Assim apodado por seus confrades por ser grande e corpulento, e falar pouco. Esta, uma característica geralmente associada aos que sabem e fazem muito.
[2] Aqui também utilizado como plural genérico.
[3] Frei Zaqueu: O Casamento Tem Cura.
[4] Santo Agostinho de Hipona, Bispo e Doutor.
[5] Sl CXXXIX.
[6] Eclo VI, 6.
De fato o desafio é grande hoje, tempos onde recebemos influências gnósticas de todos os lados, diferente de outrora nos tempos da Cristandade. É preciso pedir sempre a Graça para suportar e perseverar na fé.
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