sexta-feira, 2 de junho de 2017

Da profundíssima humildade do Coração de Jesus

Apesar de sua inocência infinita o Salvador tomou sobre si todos os pecados dos homens, afim de alcançar-lhes o perdão e expiá-los Ele mesmo, via-se sempre, perante a justiça de Deus, como súdito do pecado, como pecador universal: “Fez-se por nós, disse São Paulo, objeto de maldição”





Mons. de Ségur (*) | Tradução Sensus fidei: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração”. Jesus não é somente “manso de coração, mitis corde”, é também “humilde de coração, humilis corde”; tão perfeitamente unido como manso.
Podemos compreender a perfeição desta santa humildade considerando, primeiramente, o rebaixamento de seu Coração na presença da grandeza e santidade infinitas de Deus; depois seus sentimentos com relação às honras e glória do mundo; e por último, seus sentimentos com relação às humilhações, ultrajes e desprezos.
A santa humanidade do Filho de Deus não perdeu jamais de vista a majestade infinita de Deus que lhe dava a existência e a vida, da qual dependia totalmente e sem a qual nada era nem tinha. Esta clara visão de seu nada como criatura, e do tudo de Deus seu Criador, a quem estava hipostaticamente unida, conservava-a em uma humildade incomparável. A humildade, com efeito, consiste antes de tudo em reconhecer com alegria que Deus é tudo em nós e fora de nós, e que de nós mesmos nada temos, nada somos, nem sequer somos. “Eu sou O que é, e tu és a que não és”, dizia um dia Jesus à Santa Catarina de Sena. Esta verdade é a base da adoração.
Não o esqueceu jamais o Coração santo de Jesus. Estava diante de Deus como o que não é, e daqui aquela submissão absoluta, universal; aquela adoração incessante, aqueles louvores, aquela total entrega, aqueles deveres inefáveis de uma Religião perfeitíssima. Ademais, como apesar de sua inocência infinita o Salvador havia tomado sobre si todos os pecados dos homens,[1] afim de alcançar-lhes o perdão e expiá-los Ele mesmo, via-se sempre, perante a justiça de Deus, como súdito do pecado, como pecador universal: “Fez-se por nós, disse São Paulo, objeto de maldição”.[2] O que é o pecado perante Deus, era Jesus aos seus próprios olhos. Embora sendo Filho de Deus, “não tinha em si mesmo nenhuma complacência”.[3] Sempre rebaixado em seu Coração, primeiro diante da majestade e depois diante da santidade de Deus, era tão perfeitamente humilde como perfeitamente santo: “Aprendei de mim que sou manso e humilde de Coração”.
Oh, Jesus, que exemplo e que lição! E me atreverei, eu pecador, eu miserável, abandonar-me, ainda às ilusões da vã complacência! Oh, não, jamais, meu divino Dono! Como Vós, convosco e por Vós quero “permanecer na verdade”; e não me deixarei seduzir pelo pai do orgulho, que “não soube permanecer na verdade, in veritate non stetit”.[4] Com vossa graça não esquecerei jamais que por mim mesmo nada sou senão um miserável pecador; e o grito do meu coração será doravante o do publicano do Evangelho: “Senhor, tende piedade de mim, pobre pecador!”[5]
Em segundo lugar e por sua vez o segundo efeito da profundíssima humildade do Coração de Jesus, é sua absoluta aversão a estima e a glória do mundo. Era-lhe, sem dúvida, devida a glória, porque é Deus em unidade do Pai e do Espírito Santo; e quando por ocasião de sua segundo vinda se apresente ao mundo com toda a majestade de sua glória, os Anjos e os homens o adorarão com o rosto por terra. Sim, mas em sua primeira vinda veio matar o orgulho que o homem perdeu; e reservando para mais tarde a esplendorosa manifestação de sua divindade, mostra-nos unicamente em sua vida mortal o que é o homem pecador, o que deve fazer, o que deve querer, o que deve evitar para “manter-se na verdade”.
Por isto, dando a Deus o que só a Deus pertence, a honra, a estima, a soberania, a majestade da glória e dos louvores, sua santa humanidade recusou tudo isto como impróprio a nada e ao pecador. Se alguma vez, como no Tabor, no domingo de Ramos e depois de seus principais milagres, tolera certo esplendor em torno de sua pessoa, não é por si, mas por nós, para fortificar nossa fé; e nesse esplendor reluz com maior brilho a sua caritativa humildade.
Que vem a ser perante Jesus, tão humilde de coração, minhas miseráveis pretensões à estima e aos louvores, minha sede de vanglória e de triunfo, minhas aspirações ao brilho e ser aplaudido, meus ambiciosos desejos e todo esse absurdo cortejo de ilusões e de vaidade, filhas todas do orgulho? Jesus manso e humilde, ensinai-me a humildade, e apartai meu pobre coração das perversas inclinações que lhe arrastam à vanglória.
Finalmente, a humildade do Sagrado Coração de Jesus não se manifesta pelo amor que a justiça e a verdade lhe inspiravam ao silêncio, à vida obscura, aos desprezos, aos ultrajes e todas as humilhações que brilham em torno de seu presépio e de sua cruz.
Recordai as humilhações de todo gênero que nosso adorabilíssimo Salvador quis sofrer: em sua Encarnação, quando sua infinita grandeza se rebaixou até tomar a forma de um pobre menino, de um humilde escravo, encerrado no seio de sua criatura, e recebendo dela a vida; em seu nascimento, em meio da pobreza e da miséria; em toda sua infância, perseguido, desterrado e desprezado pelos homens; em sua adolescência e naquela grande obscuridade de Nazaré, passadas em um rude trabalho e no mais humilde silêncio; em sua vida pública, em sua penitência no deserto, em seus jejuns, em suas pregações, objeto sempre das calúnias e perseguições dos judeus; e finalmente, em sua dolorosa Paixão, na qual foi atormentado pelos demônios e pelos homens, esbofeteado, cuspido, tratado como um blasfemo e como um louco, escarnecido por todo seu povo, condenado à morte e cravado na cruz como o pior dos malfeitores. Que humilhações, que profundo rebaixamento! E era Deus!
Seu adorável Coração as aceitou com gozo, porque eram devidas ao pecador universal, ao pecador dos pecadores. Meus pecados mereciam todos esses golpes; e Ele levava todos os meus pecados.
E de que abatimentos, oh, Jesus, em vosso sepulcro, onde já não eras mais do que um cadáver; em vossa Eucaristia, onde velando vossos eternos esplendores sob as espécies sacramentais, tanto vos rebaixais por mim e expondo-vos a todos os sacrilégios e ultrajes que há mais dezoito séculos mancharam vosso tabernáculo; em vossa Igreja, tão desconhecida: em vossos Mártires e em vossos membros odiados e perseguidos! Pois bem, tantas humilhações Jesus quis sofrê-las todas, quis amá-las todas.
E eu, pecador, eu as temo como o fogo, e fujo delas com todas as forças do meu amor próprio e de minha cegueira! Quão diferente é meu coração do Coração do meu divino Mestre, abismado voluntária e gozosamente nas ignomínias que reparavam a desonra que a seu Pai fariam meus pecados; que me livraram das eternas confusões do inferno; que me mereciam as glórias do Paraíso; que eram remédio divino e onipotente de meu detestável orgulho, princípio de todos os meus pecados; que me traziam do céu a santa humildade, fundamento de todas as virtudes.
Coração de Jesus, modelo e origem da humildade, adoro-vos, amo-vos e me consagro a Vós para sempre. Humilíssima e dulcíssima Virgem Maria alcançai-me do Sagrado Coração de vosso divino Filho a graça das graças, que é a santa humildade.
Notas
[1] Peccata nostra sua esse voluit. (S. Aug.)
[2] Christus factus pro nobis maledictum. (Galat. III, 13.)
[3] Christus non sibi placuit. (Rom. XI, 3.)
[4] Joan. VIII, 44.
[5] Deus, propitius esto mihi pcccatori. (Luc. XVIII, 13.)

(*) Monsenhor de Ségur. El Sagrado Corazon de Jesus. pp. 160-166. Casa Editorial de Manuel Galindo y Bezares. 1888.

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