Jesus amou-nos com um amor de complacência, porque as suas delícias foram estar com os filhos dos homens e atrair os homens a si, fazendo-se Ele próprio homem. Amou-nos com um amor de benevolência, fazendo compartilhar ao homem a sua divindade, de forma que o homem fosse Deus.
Uniu-se a nós com uma união tão incompreensível, que se uniu e aderiu à nossa natureza tão forte, indissolúvel e infinitamente, que nada jamais se uniu tanto à humanidade como agora a santíssima divindade na pessoa do Filho de Deus. Derramou-se todo em nós, e, por assim dizer, fundiu a sua grandeza reduzindo-a à nossa pequenez, e é assim que ele é chamado fonte de água viva, orvalho e chuva celeste. Esteve em êxtase, não só como diz São Dionísio, porque, em razão do excesso da sua amorosa bondade ficou como fora de si, estendendo a sua providência sobre tudo e encontrando-se em tudo, mas, como diz São Paulo, deixou-se a si mesmo, despojou-se da sua gradeza e da sua glória e demitiu-se do trono da sua incompreensível Majestade, e por assim dizer aniquilou-se para se unir à nossa humanidade, encher-nos com a sua divindade e bondade, elevar-nos à sua dignidade e dar-nos o divino título de filhos de Deus.
E aquele do qual se escreveu: "Eu vivo por mim mesmo, diz o Senhor", poderia dizer com o Apóstolo: "Não sou eu que vivo por mim; é o homem, que vive em mim. A minha vida é o homem, e morrer pelo homem é o que me agrada; a minha vida esta oculta com o homem em Deus".
O que habitava em si mesmo, habita agora em nós, e o que estava de toda a eternidade no seio de seu Pai Eterno, veio habitar, tornando-se mortal, no seio de sua Mãe temporal; o que vivia eternamente da sua vida divina, veio viver temporalmente da vida humana, e o que foi Deus de toda a eternidade será doravante homem eternamente, a tal ponto o arrebatou o amor do homem. Muitas vezes admirou-se, por amor, como fez com o Centurião e com a Cananéia. Contemplou o jovem que até então tinha guardado os mandamentos e que desejava ser encaminhado à perfeição. Demorou-se com quietação em nós e mesmo com alguma suspensão de sentidos no seio de sua Mãe e na sua infância. Foi terno para as criancinhas, que tomava nos braços e acariciava amorosamente; para com Marta e Madalena, para com Lázaro, que chorou, e para com a cidade de Jerusalém.
Animou-se em um zelo sem igual, que, como diz São Dionísio, se converteu em ciúme; remindo todo o mal da sua amada natureza humana com o preço da sua própria vida; expulsando o demônio, príncipe deste mundo, que parecia ser seu rival e companheiro. Teve mil delíquios amorosos; pois donde podiam provir estas divinas palavras: "Eu devo receber o batismo, e como estou angustiado até que o receba?" Aguardava a hora de ser batizado no seu sangue e angustiava-se por ele não chegar: impelindo-o o seu amor a ver-nos livres pela sua morte da morte eterna. Assim permaneceu triste e suou sangue no jardim das Oliveiras, não só pela extrema dor que a alma sentiu na parte inferior da razão, pois que a dor lhe dava horror da morte e o amor fazia-lhe desejável, de forma que houve um rijo combate e uma cruel agonia entre o desejo e o horror da morte, que chegou a uma grande efusão de sangue, manando como de uma fonte viva por sobre a terra. Enfim este Deus amoroso morreu nas chamas do seu amor pela infinita caridade que tinha para conosco e pela força e virtude do amor; isto é, morreu de amor, por amor, em amor e para amar. Porque embora os cruéis suplícios fossem suficientes para fazer morrer quem quer que fosse, embora a morte não pudesse entrar na vida d'Aquele que tem as chaves da vida e da morte, se o amor divino que maneja estas chaves não tivesse aberto as portas à morte, afim de que ferisse este divino corpo e lhe tirasse a vida; não se contentando o amor em o tornar mortal sem lhe dar a morte. "Ninguém me tira a vida, diz Ele; mas entrego-a eu. Tenho o poder de a entregar e retomar quando me apraz. Foi oferecido, diz Isaias, porque quis".
Não obstante, não diz que o seu espírito se separou dele e o deixou; mas, pelo contrário, que o entregou nas mãos de seu Eterno Pai. Santo Atanásio nota que Jesus baixou a cabeça para morrer, para consentir e inclinar-se diante da vinda da morte, a qual de outra forma não ousaria aproximar-se d'Ele, e, bradando em voz alta, entregou o espírito a seu Pai, por mostrar que, assim como tinha bastante alento e força para não morrer, também tinha tanto amor, que não podia viver mais sem fazer reviver por sua morte os que sem ela não podiam evitar a morte, nem aspirar à verdadeira vida. Eis porque motivo a morte do Salvador foi um verdadeiro sacrifício, sacrifício de holocausto que Ele próprio ofereceu a seu Pai por nossa redenção. Embora as penas e dores da sua paixão fossem tão fortes que qualquer outro homem morreria, quanto a Ele, não morreria se quisesse e foi o fogo da sua infinita caridade que lhe consumiu a vida.
Foi Ele próprio o sacrificador que se ofereceu a seu Pai e se imolou por amor e em amor. Mas não digais que esta morte amorosa do Salvador não fosse por uma espécie de enlevo; porque o objeto pelo qual a sua caridade o entregou à morte não era tão amável que lhe pudesse arrebatar aquela alma divina, que de seu corpo saia por forma de êxtase, impelida e lançada por afluência e força de amor como nós vemos a mirra expulsar o seu primeiro licor, somente por abundância, sem que a espremam de forma alguma, como Jesus Cristo dizia: "Ninguém me tira ou arrebata a alma; dou-a eu voluntariamente". Oh! Deus! que fogo tão próprio para nos inflamar a praticarmos exercícios de amor para com um Salvador tão bom, vendo que tão amorosamente os praticou para conosco, que tão maus somos! Esta doce caridade de Jesus Cristo esmaga-nos.
Pensamentos Consoladores
São Francisco de Sales
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