terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Do pequeno número dos que se salvam

 



Primeiro ponto — Considera que não somente é pequeno o número dos que se salvam, com respeito àquela quase inumerável multidão de infiéis, de hereges e de cismáticos que perecem miseravelmente; mas também com respeito à espantosa multidão de fiéis que se condenam dentro do próprio seio da Igreja.

Há poucas verdades mais terríveis que esta verdade, e talvez nenhuma haja nem mais clara, nem mais solidamente estabelecida.

Entrai pela porta estreita, diz-nos o Filho de Deus, porque é larga a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e é grande o número dos que vão por ele.

Muitos são os chamados, diz Ele noutra parte, e poucos os escolhidos (Mt 20).

O Salvador tantas vezes repetia esta verdade aos seus discípulos, que um deles perguntou-lhe em uma ocasião: Senhor, é tão pequeno o número dos que se salvam? O Filho de Deus, temendo acovardar os que o escutavam, fingiu querer disfarçar a pergunta, e contentou-se com responder somente: Meus filhos, porfiai por entrar pela porta estreita (Lc 13).

O apóstolo São Paulo, cheio do Espírito do seu divino Mestre, compara indiferentemente todos os cristãos aos que correm no estádio:

Todos correm, diz ele, porém um só é que obtém o prêmio e a coroa.

E para dar a entender que fala precisamente dos fiéis, traz o exemplo dos israelitas, em cujo favor Deus tinha obrigado tantas maravilhas. Todos, diz o Apóstolo, debaixo da conduta de Moisés foram batizados na nuvem e no mar; porém de seiscentos mil homens capazes de tomar armas que saíram do Egito, sem contar as mulheres, os velhos e os meninos, só dois entraram na terra da promissão, Caleb e Josué (1Cor 19).

Terrível comparação! E será menos terrível o que ela significa?

De todos os habitantes do universo, uma única família escapou das águas do dilúvio.

De cinco popularíssimas cidades que foram consumidas pelo fogo do céu, apenas quatro pessoas se livraram das chamas.

De tantos paralíticos que estavam ao redor da piscina, só um sarava cada mês.

Isaías compara o número dos escolhidos ao das poucas azeitonas que ficam nas oliveiras depois da colheita, ao dos poucos bagos escondidos na vide que escapam à diligência dos vindimadores.

Bom Deus, ainda quando fosse verdade que de dez mil pessoas uma só havia de se condenar, eu deveria tremer, deveria estremecer, receando ser essa pessoa infeliz! Talvez que de dez mil apenas se salve uma, e eu vivo sem susto! E eu estou sem temor!

Ah, doce Jesus meu, quanto não é para temer esta minha indiferença tão parecida ao letargo! Vou com a multidão pelo caminho espaçoso e espero chegar ao termo do caminho estreito! Onde confiança mais irracional?

Segundo ponto — Considera que ainda quando esta verdade não estivesse tão fundada nos princípios evangélicos em que todos os cristãos convêm, bastaria a razão natural para nos convencer de que é pequeno o número dos que se salvam.

Instruídos das verdades da nossa religião, informados dos deveres dos cristãos e à vista dos costumes do século, poderá inferir-se racionalmente que se salvam muitos fiéis?

Para conseguir a salvação é mister viver segundo as máximas do Evangelho; e é grande o número dos que passam vida pautada por essas máximas?

Para conseguir a salvação torna-se necessário fazer aberta profissão de ser discípulo de Jesus Cristo; e quantos não há no dia de hoje que se envergonham de o parecer?

Para conseguir a salvação é necessário renunciar afetiva ou efetivamente a tudo o que se possui; é necessário carregar a cruz todos os dias. Que pureza inalterável! Que delicadeza de consciência! Que humildade profunda! Que bondade exemplar! Que sólida piedade! Que caridade! Que retidão!

Por estes sinais conheces no mundo muitos discípulos de Cristo?

O mundo é inimigo irreconciliável do Salvador; não é possível servir a um tempo dois senhores. Julga pois agora qual destes dois amos tem mais criados que o sirvam.

Para que qualquer se salve, não basta que se não vingue do inimigo; é mister fazer o bem aos que lhe fazem o mal. Não basta condenar os pecados de obra; é necessário ter horror até mesmo dos pensamentos maus. Não basta não reter injustamente os bens alheios; é mister socorrer os pobres com os próprios.

A lei cristã reprova toda a profanidade, todo o fausto, toda a ambição; a modéstia há de ser o mais belo ornamento, o mais rico adorno de uma pessoa cristã. Segundo esta pintura conheces por aí muitos cristãos?

Já sabes qual é o primeiro mandamento da lei: Amarás a teu Deus e Senhor com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças, com todo o teu espírito, e ao próximo como a ti mesmo. Este é o primeiro mandamento e a base de todos os outros.

Reflete sobre cada uma destas palavras; vê se há muitos que guardem este mandamento, e conclui se são muitos os que se salvam.

O Evangelho é a regra dos outros costumes: quantas pessoas vivem hoje segundo as máximas do Evangelho?

Para entrar no céu é mister, ou não ter perdido a graça, ou tê-la recuperado por meio da penitência. E será muito crescido hoje em dia o número dos inocentes, ou o dos verdadeiros penitentes?

Segundo todas estas provas, fundadas em nossa própria razão natural, julguemos serenamente se serão muitos os que se salvam; e concluamos que ainda quando Jesus Cristo não tivesse explicado com tanta clareza sobre o seu pequeno número, somos forçados pela razão a confessar que é muito grande o dos que infelizmente se condenam.

Meu doce Jesus, que morrestes pendente em um afrontoso madeiro pela salvação de todos os homens, não permitais que eu seja do número dos que se perdem.

Perca-se, meu Deus, o que quiser perder-se, que pelo que me toca a mim, ainda que soubesse que um único havia de salvar-se, eu faria, com o auxílio da vossa divina graça, tudo o que pudesse para ser esse único.

Jaculatórias

Salvum fact servum tuum, Deus meus, sperantem in te (Sl 85).
Salvai, ó meu Deus, este humilde servo vosso que espera unicamente na vossa misericórdia.

Quam arcta via est quae ducit ad vitam; et pauci sunt qui invenint eam (Mt 7).
Que estreito é o caminho que guia à vida eterna, e quão poucos dão com ele!

Propósitos

1 — É evidente que serão poucos os que se salvam, com respeito à espantosa multidão dos cristãos que se condenam.

Todavia ainda que o número dos primeiros fosse muito mais pequeno, é mister, custe o que custar, fazer todo o possível para ser deste número.

Para este fim, toma uma forte resolução de aplicar todos os teus talentos e toda a tua indústria a fim de que seja bem-sucedido em negócio de tanta consequência.

O caminho que conduz à vida é estreito. Clame, grite quanto quiser o amor-próprio e as paixões; não há dois caminhos para a vida.

Desde já hás de resolver-te a fazer todos os esforços imagináveis para entrar pela porta estreita.

Foge de todo o confessor de mangas largas, isto é, passa culpas, que são muito maus guias.

O caminho é estreito, é áspero, é dificultoso, e mais ainda em razão de se trepar por ele carregado com uma pesada cruz; porém é único, não há outro em que escolher. Nem Cristo nos ensinou outro, nem foi por outro nenhum dos Santos, nenhuma das almas que se salvaram. Tiveste porventura a dita de encontrar outro caminho?

Ele é pouco frequentado; não vás por onde vai a multidão; porque o ruído que há e o pó que se levanta impedem de se verem os precipícios.

Foge do grande mundo, olha com horror as suas máximas, especialmente aquela que diz que se deve viver e fazer como os outros vivem e fazem.

Não apareças jamais nos espetáculos e nos bailes, e evita quanto possas todos os divertimentos, todas as reuniões mundanas.

Impõe-te uma lei, faz ponto de honra de pertencer ao pequeno número daquelas almas devotas, humildes, fervorosas, cujo prazer é cumprir as obrigações, cuja diversão é estar no recolhimento, e a quem o mundo não tem que repreender senão o serem muito modestas, muito circunspectas, muito piedosas.

2 — Não sabeis, dizia São Paulo, que aqueles que correm no estádio, todos na verdade correm, mas um só é que obtém o prêmio?

Corre, pois, de sorte que o obtenhas; e para isto, além do que fica ponderado, observa o seguinte:

Primeiro: Visita com frequência a Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento. Põe toda a tua confiança neste divino Salvador, e professa uma terna e respeitosa devoção a este adorável Mistério.

Segundo: A comunhão frequente com as devidas disposições assegura, por assim dizer, a salvação e alimenta a alma com o pão dos fortes. Que coisa tem o Senhor mais boa e mais excelente, diz o profeta Zacarias, do que o trigo dos escolhidos? (Zc 9)

Terceiro: Uma devoção terna e perseverante à Santíssima Virgem foi sempre considerada como sinal de predestinação, motivo por que São João Damasceno lhe chama o penhor seguro da nossa salvação eterna.[1] Os que estiverem na graça de Maria, diz São Boaventura, serão reconhecidos pelos moradores do Paraíso como seus concidadãos, e aquele que estiver marcado com este selo será escrito no Livro da Vida: Qui acquirunt gratiam Mariae, agnoscentur a civibus Paradisi, et qui habuerit hunc caracterem, adnotabitur in libro vitae.[2] Reza todos os dias uma Salve Rainha para conseguires pela poderosa intercessão da Santíssima Virgem ser do pequeno número dos que se salvam.

Fonte: Livro Ano Cristão – Volume Fevereiro


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domingo, 26 de fevereiro de 2023

Jesus no deserto e as tentações das almas escolhidas

 

Jesus é tentado pelo demônio no Deserto

Tire o maior proveito desta Meditação seguindo os passos

Meditação para o Primeiro Domingo da Quaresma

Iesus ductus est in desertum a spiritu, ut tentaretur a diabolo – “Jesus foi levado pelo espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo” (Mt 4, 1)

Sumário. Meu irmão, se o Senhor permite que sejas tentado, não desanimes, porquanto vê nisso um sinal de que Ele te ama e te quer fazer mais semelhante a Jesus Cristo, que, como refere o Evangelho de hoje, foi também tentado. Esforça-te, porém, a exemplo do próprio Redentor, por empregar todos os meios para seres vencedor. Especialmente refreia as tuas pequenas paixões desordenadas, mortificando-as pela penitência e recorre sempre a Deus pela oração contínua.

I. Os trabalhos que mais afligem nesta vida às almas amantes de Deus, não são tanto a pobreza, a enfermidade e as perseguições, como as tentações e as securas espirituais. Quando a alma goza da amorosa presença de Deus, todas as tribulações, em vez de a afligirem, mais a consolam, fornecendo-lhe a ocasião para oferecer a Deus algum penhor de seu amor. Mas ver-se pela tentação em perigo de perder a graça divina e temer na secura que já a perdeu, é isso uma pena demasiado amarga para quem ama deveras a Deus. — Observemos, porém que é esta a sorte comum das almas santas: Quia acceptus eras Deo, necesse fuit, ut tentatio probaret te (1) — “Porque eras aceito de Deus, por isso foi necessário que a tentação te provasse”.

Quem foi mais santo do que Jesus Cristo? Todavia ele foi levado pelo espírito ao deserto para ser tentado pelo diabo. Em primeiro lugar, foi tentado de gula, porque “tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, teve fome. E chegando-se a Ele o tentador, disse: Se és Filho de Deus, dize que estas pedras se convertam em pães.”

Depois foi tentado de presunção, porque “o diabo o transportou à cidade santa e O pôs sobre o pináculo do templo e Lhe disse: Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, porque está escrito: Recomendou-te aos seus anjos, e eles te levarão nas palmas das mãos, a fim de que nem sequer tropeces numa pedra.” Finalmente foi tentado de idolatria; porque o diabo, vendo-se vencido uma outra vez, “o transportou ainda a um monte muito alto, e mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e a glória deles e Lhe disse: Todas estas coisas te darei, se prostrado me adorares.”

Uma alma, pois, por se ver tentada, não deve ainda temer como se já tivesse caído no desagrado de Deus, que a quer tornar mais semelhante a seu Filho unigênito e dar-lhe ocasião para adquirir grandes méritos para o céu. Quoties vincimus, toties coronamur — “Cada vitória é uma nova coroa”, diz São Bernardo.

II. Os meios de que nos devemos servir para vencer as tentações são os mesmos que nosso divino Redentor nos ensina com o seu exemplo no Evangelho de hoje. — Cum ieiunasset quadraginta diebus – Jesus jejuou quarenta dias. Para vencermos todas as tentações, e em particular a dos sentidos, é mister que nós também, especialmente neste tempo de Quaresma, mortifiquemos a carne pelo jejum, pela penitência, e pelo recolhimento, e que ao mesmo tempo avigoremos o espírito com meditações e orações, porque não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.

Non tentabis Dominum Deum tuum — “Não tentarás ao Senhor teu Deus”. Para vencermos as tentações, devemos em segundo lugar evitar as ocasiões de pecado. Aqueles que se expõem voluntariamente aos perigos e não pretendem cair, tentam Deus para fazer milagres. A custódia dos anjos, diz São Bernardo, é prometida a quem caminha nos caminhos de Deus, viis suis, e não àquele que se expõe voluntariamente ao perigo de cair num abismo. — Vade, Satana – “Vai-te, Satanás”.

Finalmente o terceiro meio para sairmos vencedores, consiste em expulsarmos o demônio inteiramente de nossa alma e em estarmos resolvidos a adorar a Deus nosso Senhor, e servi-Lo a Ele só. Ó! Quantos há que não cuidam em refrear as suas paixões nascentes e que imaginam poder servir a dois senhores. Mas depois, ao primeiro assalto mais forte de qualquer tentação, acabam por cair e perder-se eternamente!

Ó meu amabilíssimo Jesus, vejo que no passado caí e recaí tão miseravelmente, porque me descuidei de imitar os vossos divinos exemplos. Arrependo-me de todo o coração; peço-Vos perdão e prometo que para o futuro serei mais cuidadoso. Mas fortalecei a minha fraqueza. Eu Vo-lo peço pela mortificação que praticastes, abstendo-Vos por quarenta dias de toda a alimentação, e pela humildade que mostrastes, permitindo ao demônio que Vos tentasse como a qualquer outro filho de Adão. “Ó Deus, que purificais a vossa Igreja com a anual abstinência quaresmal: concedei à vossa família, que com boas obras execute o que de Vós deseja obter com a sua abstinência.” (2)

† Doce Coração de Maria, sêde minha salvação.

Referências:

(1) Tb 12, 13
(2) Or. Dom. curr.

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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 298-300)

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Primeira dor de Maria Santíssima – Profecia de Simeão

 


Nossa Senhora das Dores, Pietà (Bouguereau, 1876)

Tuam ipsius animam pertransibit gladius – “Uma espada transpassará a tua alma” (Lc 2, 35)

Sumário. O Senhor usa esta compaixão conosco, de não nos deixar ver as cruzes que nos esperam, a fim de que as tenhamos de sofrer uma só vez. Maria Santíssima, ao contrário, depois da profecia de São Simeão, tinha sempre diante dos olhos e padecia continuamente todas as penas que a esperavam na Paixão do Filho. Mas se Jesus e Maria inocentes tanto padeceram por nosso amor, como ousaremos lamentar-nos, nós que somos pecadores, quando temos de padecer um pouco por amor deles?

I. Neste vale de lágrimas, cada homem nasce para chorar e cada um deve padecer sofrendo aqueles males que diariamente lhe acontecem. Mas quanto mais triste seria a vida, se cada um soubesse também os males futuros que o têm de afligir! O Senhor usa esta compaixão conosco, de não nos deixar ver as cruzes que nos esperam, a fim de que, se as temos de padecer, ao menos as padeçamos uma só vez. ― Mas Deus não usou semelhante compaixão para com Maria, a qual, porque Deus quis que fosse Rainha das dores e toda semelhante ao Filho, teve sempre de ver diante dos olhos e de padecer continuamente todas as penas que a esperavam; e estas foram as penas da paixão e morte de seu amado Jesus.

Eis que no templo de Jerusalém, Simeão, depois de ter recebido o divino Infante em seus braços, lhe prediz que aquele seu Filho devia ser alvo de todas as contradições e perseguições dos homens e que por isso a espada de dor devia traspassar-lhe a alma: Et tuam ipsius animam pertransibit gladius. ― Davi, no meio de todas as suas delícias e grandezas reais, quando ouviu que o Profeta Natan lhe anunciava a morte do filho, não tinha mais paz: chorava, jejuava, dormia à terra nua. Não é assim que fez Maria. Com suma paz recebeu ela a nova da morte do Filho e com a mesma paz continuou a sofrê-la; mas ainda assim, que dor não devia sentir o seu Coração!

Nem serviu para lha mitigar o conhecimento que já de antemão tinha do sacrifício a fazer, pois que, como foi revelado a Santa Teresa, a bendita Mãe conheceu então em particular e mais distintamente todas as circunstâncias dos sofrimentos, tanto exteriores como interiores, que haviam de atormentar o seu Jesus na sua Paixão. Numa palavra, a mesma Bem-Aventurada Virgem disse a Santa Matilde, que a este aviso de São Simeão toda a sua alegria se converteu em tristeza.

II. A dor de Maria não achou alívio com o correr do tempo; ao contrário, ia sempre aumentando, à medida que Jesus, crescendo em sabedoria, em idade e em graça, junto de Deus e junto dos homens (1), se tornava mais amável aos olhos de sua Mãe, e se avisinhava mais o tempo da sua amargosa Paixão. Eis o que a própria divina Mãe revelou a Santa Brígida:

“Cada vez que eu olhava para meu Filho, sentia o meu coração oprimido de nova dor e enchiam-se meus olhos de lágrimas”.

Ruperto abade contempla Maria dizendo ao Filho enquanto o alimentava:

Fasciculus myrrhae dilectus meus mihi; inter ubera mea commorabitur (2). Ah, Filho meu, eu te aperto entre meus braços porque muito te amo; mas quanto mais te amo, tanto mais para mim te transformas em ramalhete de mirra e de dor, pensando em tuas penas. Tu és a fortaleza dos Santos, e um dia entrarás em agonia; és a beleza do paraíso, e um dia serás desfigurado; és o Senhor do mundo, mas um dia serás preso como um réu; és o Criador do universo, mas um dia te verei lívido pelas pancadas; numa palavra, tu és o Juiz de todos, a glória dos céus, o Rei dos reis, mas um dia serás sentenciado, desprezado, coroado de espinhos, tratado como rei de escárnio e pregado num infame patíbulo. E eu, que sou tua Mãe, eu, que te amo mais que a mim mesma, terei de ver-te morrer de dor, sem te poder dar o menor alívio: Fasciculus myrrhae dilectus meus mihi ― O meu amado é para mim um ramalhete de mirra”.

Se, pois, Jesus, nosso Rei, e Maria, nossa Mãe, bem que inocentes, não recusaram por nosso amor padecer durante toda a sua vida uma pena tão atroz, não é justo que nós nos lamentemos, se padecemos um pouco; nós que porventura muitas vezes temos merecido o inferno.

Referências:

(1) Lc 2, 52
(2) Ct 1, 12

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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 295-297)


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Comemoração da Coroa de espinhos de Nosso Senhor Jesus Cristo

 Coroação de Espinhos (Stom Matthias)

Coroação de Espinhos (Stom Matthias)

Et milites plectentes coronam de spinis, imposuerunt capiti eius – “E os soldados tecendo de espinhos uma coroa, lha puseram sobre a cabeça” (Jo 19, 2)

Sumário. Os bárbaros algozes, não contentes com a horrível carnificina feita em Jesus com a flagelação, Lhe põem por escárnio uma coroa de espinhos na cabeça e apertam-na de modo que os espinhos penetraram até ao cérebro. Eis como o Senhor quis reparar a maldição fulminada contra a terra, isto é, contra Adão, em conseqüência da qual a natureza humana não pode produzir senão abrolhos e espinhos de culpas! Eis como Jesus quis expiar os nossos maus pensamentos!

I. Os bárbaros algozes ainda não contentes com a horrenda carnificina feita no corpo sacrossanto de Jesus Cristo com a flagelação, instigados pelos demônios e pelos judeus, querendo tratá-Lo de rei de comédia, Lhe põem aos ombros um farrapo de um vestido vermelho, à guisa de manto real; uma cana verde na mão à guisa de cetro, e na cabeça um feixe de espinhos entrelaçados em forma de coroa. E para que esta coroa não só Lhe servisse de ludibrio, mas também Lhe causasse grande dor, foi feita, na opinião comum dos escritores, em forma de capacete ou chapéu, de sorte que cobria toda a cabeça do Senhor, descia até sobre a testa.

Além disso, colhe-se do Evangelho de São Mateus, que os algozes com a mesma cana batiam nos espinhos compridos, a fim de entrarem mais dentro na cabeça. Com efeito, no dizer de São Pedro Damião, chegaram a penetrar até ao cérebro: spinae cerebrum perforantes. Se um só espinho encravado no pé de um leão o faz ressoar toda a floresta com seus dolorosos gemidos, imagina quão acerba deve ter sido a dor de Jesus Cristo que teve toda a sagrada cabeça perfurada, a parte mais sensível do corpo humano, ao qual se reúnem todos os nervos e sensações.

Tão atroz tormento não foi para Jesus de curta duração; bem ao contrário, foi o mais longo da sua Paixão, porquanto durou até à sua morte. Visto que os espinhos ficavam encravados na cabeça, todas as vezes que lhe tocavam na coroa ou na cabeça, sempre se lhe renovavam as dores. E o Cordeiro manso deixou-se atormentar à vontade dos algozes, sem proferir uma só palavra. ― Era tão grande a abundância de sangue que corria das feridas, que Lhe cobria o rosto, ensopava os cabelos e a barba, e Lhe enchia os olhos. São Boaventura chega a dizer que não era já o belo rosto de Senhor que se via, mas o rosto de um homem esfolado. Eis aí, exclama o Bem-aventurado Dionísio Cartusiano, como quis ser tratado o Filho de Deus, para obter para nós a coroa de glória no céu.

II. Maledicta terra in opere tuo… spinas et tribulos germinabit tibi (1) ― “A terra será maldita na tua obra… ela te produzirá espinhos e abrolhos”. Esta maldição foi lançada por Deus contra Adão e toda a sua descendência; pois que pela terra, não se entende tão somente a terra material, senão também a natureza humana, que estando infectada pelo pecado de Adão, não produz senão espinhos de culpas. ― Para cura desta infecção, diz Tertuliano, foi mister que Jesus Cristo oferecesse a Deus o sacrifício do seu longo tormento da coroação de espinhos. Por isso Santo Agostinho não hesita em dizer que os espinhos não foram senão instrumentos inocentes; mas que os espinhos criminosos, que propriamente atormentaram a cabeça de Jesus Cristo, foram os nossos pecados, e em particular, os nossos maus pensamentos: Spinae quid nisi peccatores? É isso exatamente o que Jesus Cristo mesmo deu a entender, quando apareceu certa vez a Santa Teresa, coroado de espinhos. Quando a Santa Lhe testemunhava a sua compaixão, disse-lhe o Senhor:

“Teresa, não te compadeças de mim pelas feridas que me abriram os espinhos dos judeus, mas antes pelas que me causam os pecados dos cristãos”

― Ó minha alma, tu também atormentaste então a cabeça de teu Redentor com o teu frequente consentimento no pecado. Por piedade! Abre ao menos agora os olhos, vê e chora amargamente o grande mal que fizeste.

Ah, meu Jesus, Vós não tínheis merecido ser tratado por mim como Vos tenho tratado. Reconheço a minha ingratidão; arrependo-me de todo o meu coração. Peço-Vos que não somente me perdoeis, mas que me deis tão grande dor, que durante a minha vida toda continue a chorar as injúrias que Vos fiz. Sim, Jesus meu, perdoai-me, visto que Vos quero amar sempre e sobre todas as coisas. “E Vós, ó Eterno Pai, concedei-me que, venerando na terra, em memória da Paixão de Jesus Cristo, a sua coroa de espinhos, mereça ser um dia por Ele coroado no céu com uma coroa de glória e honra” (2). Fazei-o pelo amor do mesmo Jesus Cristo e de Maria, sua Mãe.

Referências:

(1) Gn 3, 17
(2) Or. festi curr.

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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 293-295)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

A Incompreensão do Valor Da Cruz

 


Revmo. Sr. Pe. José Maria, Priorado S. Pio X, Lisboa, no Domingo de Quinquagésima com um sermão que nos lembra o valor imensurável da cruz e a razão pela qual este é o meio para chegarmos ao Céu. Inscreva-se como Benfeitor da FSSPX Portugal, leia mais neste link: https://www.youtube.com/channel/UC_6V... Neste canal, você encontra homilias, transmissões ao vivo da Missa Tradicional, Formação Católica e meditações diversas, tudo em conformidade com a doutrina de dois mil anos da Santa Igreja Católica. Para conhecer o apostolado da Fraternidade de São Pio X na internet, visite também: Página do Facebook: https://www.facebook.com/FSSPX.Portugal/ Website: https://www.fsspx.es/pt?fbclid=IwAR0g...

A lembrança da morte e o jejum quaresmal

 “Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar”

“Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar”

Tire o maior proveito desta Meditação seguindo os passos

Meditação para Quarta-feira de Cinzas

Memento homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris – “Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar” (Gn 3, 19)

Sumário. Os insensatos que não creem na vida futura estimulam-se com o pensamento da morte a passarem bem a vida. De maneira bem diferente devemos nós proceder, os que sabemos pela fé que a alma sobrevive ao corpo. Nós, lembrando-nos de que em breve temos que morrer, devemos cuidar da nossa eternidade e por meio de oração e penitência aplacar a justiça divina. É com este intuito que a Igreja, depois de por as cinzas sobre a cabeça, nos ordena o jejum da Quaresma.

I. Para compreendermos em toda a sua extensão o sentido destas palavras, imaginemos ver uma pessoa que acaba de exalar o último suspiro. Ó Deus, a cada um que vê este corpo, inspira nojo e horror. Não passaram bem nem vinte e quatro horas depois que aquela pessoa morreu e já o mau cheiro se faz sentir. É preciso abrir as janelas e queimar bastante incenso, a fim de que o fedor não infeccione a casa toda. Os parentes com pressa mandam levar o defunto para fora da casa e entregar à terra.

Metido que foi o cadáver na sepultura, vai se tornando amarelo e depois preto. Em seguida, aparece em todos os membros uma lanugem branca e repelente, donde sai um pus infecto que corre pela terra e donde se gera uma multidão de vermes. Os ratos veem também procurar o pasto neste cadáver, roendo-o uns por fora, ao passo que outros entram na boca e nas entranhas. Despegam-se e caem as faces, os lábios, os cabelos; escarnam-se os braços e as pernas apodrecidas, e afinal os vermes, depois de consumidas todas as carnes, consomem-se a si próprios. E deste corpo só restará um esqueleto fétido, que com o tempo se divide, ficando reduzido a um punhado de pó.

Eis aí o que é o homem, considerado como criatura mortal. Eis aí o estado a que tu também, meu irmão, serás, talvez em breve, reduzido: um punhado de pó fedorento. Nada importa ser alguém moço ou velho, são ou enfermo: a todos caberá a mesma sorte, o que a Igreja recorda pondo as cinzas bentas indistintamente sobre a cabeça de todos: Memento homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris — “Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar”.

II. Os insensatos que não creem na vida futura e têm as verdades eternas por fábulas, estimulam-se, com a lembrança da morte, a levar vida folgada e a gozarem. Comedamus et bibamus; cras enim moriemur (1) — “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. De maneira bem diferente, porém, diz Santo Agostinho, deve proceder o cristão, que pela fé sabe que a alma sobrevive ao corpo e que, depois da morte deste, terá de dar contas rigorosíssimas de tudo quanto tiver feito. — O cristão, que se lembra que em breve deverá deixar o mundo, cuidará da sua eternidade e procurará aplacar a justiça divina com penitências e orações. É por isso exatamente que a Igreja, depois de nos ter posto as cinzas sobre a cabeça, ordena a seus ministros que notifiquem aos fiéis o jejum quaresmal: Canite tuba in Sion: sanctificate ieiunium (2) — “Fazei soar a trombeta em Sião, santificai o jejum”.

Conformemo-nos, portanto, com as intenções de nossa boa Mãe; e como ela mesma o ordena, sejamos no santo tempo da Quaresma “mais sóbrios em palavras, na comida, na bebida, no sono, nos divertimentos” (3); e, o que é mais necessário, afastemo-nos mais de toda a culpa por meio de uma vida recolhida e consagrada à oração, porquanto, no dizer de São Leão, “sem proveito se subtrai o alimento ao corpo, se o espírito não se afasta mais da iniquidade”.

Ó meu amabilíssimo Redentor, consenti que eu una a minha salutar abstinência com a que Vós com tanto rigor por mim quisestes observar no deserto. Consenti também que nesta união eu a ofereça a vosso Pai Divino, como protestação de minha obediência à Igreja, em desconto de meus pecados, pela conversão dos pecadores e em sufrágio das almas santas do purgatório. Tenho intenção de renovar esta oferta todos os dias da Quaresma. “Vós, porém, ó Senhor, concedei-me a graça de começar este solene jejum com devida piedade e de continuá-lo com devoção constante” (4), a fim de que, chegada a Páscoa, depois de ter ressurgido convosco para a vida da graça, seja digno se ressuscitar também para a vida da glória. Fazei-o pelo amor de Maria Santíssima.

Referências:

(1) Is 22, 13
(2) Joel 2, 15
(3) Hymn. Quadr.
(4) Or. Fer. curr.

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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 288-290)

SEJA UM BENFEITOR!