“Chegada a hora da Paixão de meu Filho, seus inimigos o prenderam dando-lhe golpes em seu pescoço e em seu rosto e, cuspindo nele, o escarneciam. Além de o despirem, prenderam suas mãos em uma coluna atando-as sem misericórdia e, assim, se encontrando com esta sorte, nu por completo, padeceu a vergonha de sua nudez.
Diante de seus amigos, seus inimigos que o cercaram e começaram a açoitar seu puríssimo e santíssimo corpo. Ao primeiro açoite, eu, que em espírito era a que mais estava perto Dele, caí por terra como morta e quando retornei a mim, vi seu corpo açoitado e ferido podendo ver os ossos de suas costas por entre as feridas. E, todavia, era mais cruel quando o açoitavam com uma corda, pois estes açoites arrancavam pedaços de sua carne deixando-a sulcada como uma terra arada.
Quando meu Filho estava entregue a esta sorte, todo banhado de sangue sem haver em todo seu corpo parte sã nem onde se pudesse dar um açoite mais, um homem chegou até os carrascos e, com nojo, lhes disse: “Querem matar este homem antes que ele seja julgado?” E, então, cortou as cordas que prendiam Jesus. Com as mãos livres, meu Filho se vestiu como pôde e vi o lugar onde estavam seus pés, todo cheio de sangue, foi deixando suas pegadas ensangüentadas, acompanhei todos os seu passos, porque ao andar deixava a terra empapada com seu sangue precioso.
Não lhe deram espaço para que se vestisse e, com grande pressa e empurrões, o levaram como um ladrão, com grande dificuldade Ele tentava limpar o sangue que tinha nos olhos. Depois de haverem-no condenado, puseram sobre seus ombros a cruz e, tendo-a levado um pouco, tomaram um outro para que o ajudasse. Enquanto meu Filho caminhava até o lugar onde havia de morrer, recebia golpes no pescoço e outros na face e eram golpes dados com tanta força e veemência que, assim, eu podia ouvir claramente os sons dos açoites. Ao chegar junto com Ele ao lugar de sua Paixão, vi todos os instrumentos com que haviam de dar-lhe a morte.
Assim meu Filho esteve ali, desnudou-se ele mesmo de suas vestes enquanto seus carrascos diziam: “Estas roupas são nossas e não tornará a colocá-las porque está condenado à morte”. Estando Ele completamente nu, recebeu de alguém que se encontrava por ali, um pano para que pudesse cobrir parte de seu corpo exposto, o qual fez com muita alegria. Depois, os cruéis sacerdotes lhe agarraram e o colocaram na cruz cravando a mão direita no buraco pelo qual fora feito e atravessando a mão Dele pela parte em que os ossos estão mais unidos; depois, atando cordas ao pulso da outra mão, esticaram seu braço com violência e pregaram da mesma maneira. Logo, também pregaram o pé direito e, sobre ele, o esquerdo com os cravos que, de tal modo, todos os seus nervos e veias se estenderam e rasgaram. Puseram a coroa de espinhos em sua santa cabeça e apertaram-na, de tal forma, que com o sangue que saía, seus olhos se encheram, seus ouvidos se obstruíram e toda sua barba foi afetada com o mesmo sangue que por ela corria.
Quando meu Filho, que se achava dessa maneira, cheio de sangue e cravado na cruz, compadecendo-se de mim que estava chorando junto a Ele, fitou os olhos cheios de sangue em João, meu sobrinho, e pediu-lhe que cuidasse de mim. Neste momento ouvi uns que diziam que meu Filho era ladrão. E ouvi outros ainda dizendo que era mentiroso e outros diziam que não havia outro homem mais digno de morte do que Ele e, com isso, minha dor se renovava. Mas, como lhe havia dito, ao primeiro golpe que deram no cravo que o pregaram, caí como morta, minha visão escureceu e meus pés tremiam e, por causa de tanta dor que sentia, não pude vê-lo até que terminaram de pregá-lo. Pus-me de pé e vi meu Filho pendurado na cruz como se fosse um miserável e eu, tomada por tal agonia, apenas podia ficar em pé e mais nada. Quando meu Filho me viu com seus amigos chorando inconsolavelmente clamou por seu Pai com voz chorosa e alta dizendo: “Pai, por que me abandonaste?”
Era como se dissesse: Não há quem tenha misericórdia de mim senão vós, meu Pai. Então, se puseram os olhos meio mortos, as bochechas afundadas na face e o semblante fúnebre, a boca aberta e a língua cheia de sangue, a barriga estava grudada nas costas como se no meio não tivesse entranhas. Todo seu corpo estava roxo e debilitado pelo sangue que havia derramado; seus pés e mãos abertos e estendidos se adaptavam a forma da cruz e eu podia ver seu cabelo e barba tomados pelo sangue. E, ainda assim, estando seu corpo tão maltratado e ferido, somente seu coração se mantinha vigoroso porque tinha uma excelente e robusta natureza, visto que de minha carne tomou um corpo muito puro e perfeitamente forte. Tinha uma pele tão terna e delicada que, por menor que fosse o golpe que recebesse, no lugar saía sangue, e este sangue era tão delicado que se podia vê-lo por sob sua pele como por um cristal.
E como meu Filho era de tão forte constituição fisiológica e de natureza, lutava a vida com a morte em seu dilacerado corpo; pois a dor de seus membros e nervos destroçados subia a seu robusto e incorrupto coração e o maltratava com indescritível dor e tormento e, em outras vezes, a dor de seu coração entrava por entre os membros dilacerados, com isso, se prolongava sua amarga morte. Tomado por tamanhas dores que não cessavam, viu chorosos seus amigos, os quais preferiram padecer aquela pena em si mediante seu auxílio e, até arder para sempre no inferno, do que vê-lo padecer de tal maneira.
A Paixão de meu Filho era a causa da dor de seus amigos e excedeu a toda a amargura e tribulação que sofreu tanto no corpo como no coração porque os amava muito ternamente. Então, com a demasiada aflição de seu corpo, clamou ao Pai de parte de sua humanidade dizendo: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito”. Quando eu, sua aflitíssima Mãe, ouvi estas palavras, tremeram todos os meus membros com amarga dor que atingiu fundo meu coração já doloroso e, quantas vezes eu pensava nestas palavras, soava como de novo em meus ouvidos.
Chegando a hora de sua morte, seu coração despedaçava-se por causa da violência das dores, todos os seu membros tremiam, a cabeça levantando-se um pouco, tornava a cair, a boca estava aberta e sua língua banhada toda em sangue. Suas mãos se fecharam de forma a ficar contraída, pois nela havia os cravos e, assim, seus pés sustentavam o peso de seu corpo. Seus dedos e braços se estendiam de certo modo e as costas faziam grande força na cruz. Chegando Ele a esse estado, disseram-me: “Maria, seu Filho já está morto”.
E outros me diziam: “Morreu, mas ele ressuscitará”. Depois que todos já tinham se despedido dele, veio um que cravou uma lança no lado de meu Filho com tanto vigor que quase saiu pelo lado oposto e ao tirar a lança, toda ela estava banhada de sangue. Parecia-me, então, que meu coração havia sido atravessado, assim como havia visto o que acabara de ser feito em meu caríssimo Filho. Desceram-no da cruz e o recebi em meus braços, sua aparência era senão de um leproso cadavérico; porque os olhos estavam já mortos e repletos de sangue, a boca fria como a neve, a barba eriçada, a face contraída, as mãos e os braços tão deslocados, que não se podia segurar e, assim, colocaram em cima de meu ventre.
Da maneira em que esteve na cruz, eu o tive em meus braços como um homem que recebera tormento em todo seu corpo. Envolveram-no em um lençol limpo e eu o sequei, com minhas roupas de linho, suas feridas, limpando suas chagas e fechando-lhe os olhos e a boca que em sua morte permaneceram abertos. E por último, O colocaram no sepulcro.”
“Ama-me de todo coração, pois eu lhe tenho amado tanto que com prazer me entreguei por você a meus inimigos por própria e livre vontade e minha Mãe e amigos entregaram-se juntos a uma amarguíssima dor e pranto. Quando vi a lança, os cravos e os açoites e os demais instrumentos de minha Paixão, ainda assim me coloquei a sofrer com alegria. Quando minha cabeça sangrava por todas as partes desde a coroação de espinhos, assim, então, meus inimigos se apoderaram de meu coração, preferiria que o fizessem e o despedaçassem ao ter que perdê-la. Portanto, você seria muito ingrata se, depois de tanta entrega, não me retribuísse com grande amor. Se minha cabeça foi perfurada e se inclinou por você na cruz, também sua cabeça deveria inclinar-se à humildade. Visto que meus olhos estavam ensangüentados e cheios de lágrimas, assim seus olhos devem apartar-se de todo e qualquer deleite carnal. E, da mesma forma que meus ouvidos cheios de sangue ouviram palavras injuriosas, assim afaste os seus de ouvir mentiras e futilidades. Porque minha boca foi forçada a beber vinagre, a sua estará fechada para o mal e aberta para o bem. Minhas mãos foram estendidas e atravessadas com os cravos, por isso suas obras, que são representadas pelas mãos, devem estender-se aos pobres e a cumprir meus mandamentos. Teus pés, isto é, os afetos com que você deve vir a mim, devem ser crucificados afastando-se de todos os deleites mundanos para que, assim, como eu padeci em todos os meus membros, de igual sorte, todos os seus se ocupem do meu serviço, porque dando-lhe mais graças que aos outros, quero que me sirva mais que a eles”.
“Quando meu Filho morreu, eu era uma mulher com o coração transpassado com cinco espadas. A primeira foi sua vergonhosa nudez. A segunda espada foi a acusação contra Ele, pois lhe acusaram de traição, de falsidade e de deslealdade. Ele, quem eu sabia que era justo e honesto e que nunca ofendeu e nem quis ofender a ninguém. A terceira espada foi sua coroa de espinhos que perfurou sua sagrada cabeça tão selvagemente que o sangue escorreu até sua boca, sua barba e seus ouvidos. A quarta espada foi sua voz fraca, prestes a morrer na cruz, com a qual gritou ao Pai dizendo: ‘Pai, porque me abandou?’ Era como se dissesse: ‘Pai, ninguém se apieda de mim, somente você’. A quinta lança que cortou meu coração foi sua amarguíssima morte. Seu preciossíssimo sangue se derramava tanto quanto espadas transpassavam meu coração. As veias de suas mãos foram perfuradas e a dor de seus nervos afetados chegava até seu coração e seu coração também se virava a recorrer as suas terminações nervosas. Seu coração era forte e vigoroso, ao ter sido dotado de uma boa constituição, isto fazia com que sua vida resistisse lutando contra a morte e que sua amargura se prolongasse ainda mais no cúmulo de sua dor. À medida que sua morte se aproximava e seu corpo chegava ao máximo ante tanta dor insuportável, de repente todo seu corpo se convulsionou e sua cabeça, que ia para trás a todo momento, pareceu erguer-se de uma maneira diferente. Abriu levemente seus olhos semifechados e por vez abriu sua boca de forma que pude ver sua língua ensangüentada. Seus dedos e braços, que estavam muito contraídos, se esticaram.
Nada mais houve depois disso e, assim, entregou seu Espírito e sua cabeça abaixou-se sobre seu peito. Suas mãos correram um pouco em relação ao lugar das feridas e seus pés tiveram que suportar a maior parte do peso. Então, minhas mãos ficaram secas, meus olhos se fecharam em escuridão e meu rosto ficou pálido como a morte. Meus ouvidos não ouviam nada, meus lábios não podiam articular palavra alguma, meus pés não me sustentavam e meu corpo caiu ao chão. Quando me levantei e vi meu Filho com um aspecto pior que um leproso, lhe entreguei toda minha vontade, sabendo que tudo havia ocorrido segundo a sua e que nada disso teria sucedido sem que Ele não houvesse permitido. Dei-lhe graças por tudo e certo júbilo se misturou em minha tristeza porque vi que Ele, que nunca havia pecado e por seu grandiosíssimo amor, quis sofrê-lo todo pelos pecadores. Que estes que estão no mundo possam contemplar o que passei quando morreu meu Filho e que sempre o tenham em sua memória!”
“Maria falou: “Você deve refletir sobre cinco coisas, minha filha. Primeira, como todo os membros no corpo do meu Filho foi esticado na sua morte e como seu sangue esvaía e corria por cada membro de suas chagas enquanto estava sofrendo o esgotamento. Segunda, como Seu coração foi perfurado tão amargamente e sem misericórdia por aquele homem que enfiava a lança até que ela atingisse uma costela, e ambas as partes do coração estivessem na lança. Terceira, reflita sobre como Ele foi retirado da cruz! Os dois homens que o desceram fizeram uso de três escadas: uma alcançou seu pé, a segunda bem abaixo de seus braços e axilas, a terceira no meio de seu corpo. O primeiro homem subiu e O segurou pelo meio. O segundo puxou o prego da outra mão. Os pregos se estendiam pela trave mestra. Então o homem que estava segurando o peso do corpo desceu tão vagarosamente e cuidadosamente quanto podia, enquanto o outro homem subiu na escada que ia até os pés e puxou os pregos dos pés. Quando ele foi trazido ao chão um deles segurou o corpo pela cabeça e o outro pelos pés. Eu, sua Mãe, o segurei pela cintura. E, então, nós três o carregamos até uma pedra que eu tinha coberto com um lençol limpo no qual enrolamos Seu corpo. Eu não costurei o lençol, pois eu sabia que ele não decomporia na sepultura. Depois disso, veio Maria Madalena e outras Santas Mulheres. Anjos, também, tanto quanto os átomos do sol, estavam lá, demonstrando sua devoção ao seu Criador. Ninguém pode dizer quanta tristeza eu tinha naquele momento. Eu estava como uma mulher dando a luz e que tremia todos os membros de seu corpo após o nascimento. Embora ela mal pudesse respirar devido a dor, continuava alegrando seu coração o máximo que podia, porque sabe que a criança a qual deu a luz nunca mais voltará a mesma provação dolorosa que acabou de passar. Da mesma maneira, embora nenhuma tristeza possa ser comparada a minha tristeza por causa da morte do meu Filho, minha alma continuava se alegrando, pois eu sabia que meu Filho não morreria mais, porém viveria para sempre. Assim, minha tristeza foi misturada com uma medida de alegria. Eu realmente posso dizer que existe dois corações na sepultura que meu Filho foi enterrado. Não é dito que: ‘Onde seu tesouro está, também está seu coração? Da mesma forma, meu coração e minha mente estavam sempre na sepultura do meu Filho.”
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