Se se considera bem o que se há dito, bastará para engendrar em nós aquele ódio e aborrecimento santo de nós mesmos, que Cristo Nosso Redentor nos encomenda tanto no Sagrado Evangelho, que, sem ele, diz (Jo 14, 26), não podemos ser discípulos Seus.
Por que, que mais é mister para isso, que saber que este nosso corpo é o maior opositor e inimigo que temos? Inimigo mortal, o maior traidor que jamais se viu, que anda buscando a morte, e morte eterna, a quem lhe dá de comer e tudo de que necessita; que por ter ele um pouco de prazer, não teme em nada ultrajar a Deus e jogar alma e corpo no inferno, para sempre.
Se dissessem a alguém: "Sabei que um de vossa casa e dos que comem e bebem convosco, vos arma uma traição para matar-vos", que temor teria?
E, se lhe dissessem: "Pois sabei mais, que é tanto o ódio e inimizade que tem convosco, que tragada tem a própria morte em troca de matar-vos; já sabe que logo lhe hão de colher e matar a ele, e, com tudo isso, traz arriscada a vida para conseguir o que quer", como [o que fosse assim avisado] estando a comer e indo a dormir e a todas as horas, temeria e estaria sobressaltado, se havia de vir então [seu inimigo] e dar-lhe um golpe que o matasse!
E, se pudesse descobrir quem é, que ódio lhe conceberia e que vingança faria contra ele!
Pois esse é o nosso corpo, que come e dorme conosco, e sabe muito bem que fazendo mal a nossa alma, o faz também a si mesmo, e que jogando a alma no inferno, há de ir-se para lá com ela, com tudo isso, em troca de sair com seu gosto, atropela tudo e não repara em nada.
Vede se temos razões de aborrecê-lo!
Quantas vezes vos há posto no inferno esse vosso inimigo?
Quantas vezes vos há feito ofender aquela Infinita Bondade?
De quantos bens espirituais vos há privado?
Quantas vezes põe vossa salvação em perigo a cada hora?
Pois quem não se indignará e tomará uma coragem santa contra quem tantos males lhe há feito e de tantos bens lhe há privado e em tantos perigos lhe põe a cada momento?
Se detestamos ao demônio e lhe temos por capital inimigo pela guerra e dano que que nos faz, maior inimigo é nossa carne, porque ela nos faz mais cruel e mais contínua guerra, e muito pouco poderiam os demônios, se não tivessem por eles esta carne e sensualidade para fazer-nos guerra com ela.
Isto fazia aos Santos ter este ódio e aborrecimento contra si mesmos; e daí nascia neles um espírito grande de mortificação e penitência para vingar-se de este seu inimigo, e trazê-lo sujeito e rendido, e andar sempre com temor de dar algum contento e conforto a seu corpo, parecendo-lhes que isso era ajudar e dar armas a seu inimigo, com que cobrasse brios e forças para fazer-lhes mal.
Diz Santo Agostinho: "Não ajudemos nem demos forças a nossa carne, para que não faça guerra contra o espírito" (De salutaribus monitis, c. 35), mas procuremos castigá-la e mortificá-la para que não se rebele, porque, como diz o Sábio (Prov 29, 21), "aquele que delicadamente cria a seu servo desde sua primeira idade, depois o achará rebelde e contumaz".
Andavam aqueles santos monges antigos com tão grande cuidado neste exercício, procurando mortificar e diminuir as forças a este inimigo, que quando outros meios não bastavam, realizavam trabalhos corporais muito excessivos para domar e quebrantar seu corpo, como conta Paládio de um monge que era muito fatigado de pensamentos de vaidade e soberba, e não podendo afastá-los de si, resolveu tomar uma pá e passar um grande montão de terra de uma parte a outra.
Perguntavam-lhe: "Que fazeis?"
Respondia: "Atormento e fatigo a quem me fatiga e atormenta; vingo-me de meu inimigo".
O mesmo se diz de São Macário em sua Vida; e de São Doroteo se conta que fazia grande penitência e afligia muito a seu corpo, e, uma vez, vendo-lhe outro tão torturado, disse-lhe: "Por que atormentas tanto teu corpo?" Respondeu: "Porque me mata ele a mim".
O glorioso São Bernardo, encendido em um ódio e coragem santa contra seu corpo, como contra seu inimigo capital, dizia: "Levante-se Deus em nossa ajuda, e seja destruído este inimigo, menosprezador de Deus, amador do mundo e de si mesmo, servo e escravo do demônio. Por certo, se tendes bom sentir, que digais comigo: Bem merece a morte! morra o traidor! coloquem-no no madeiro, crucifiquem-no!"
Pois com estes brios e zelos temos de andar nós, mortificando nossa carne e sujeitando-a para que não se rebele, e arraste após si o espírito e a razão, e tanto mais que, vencido este inimigo, ficará também o demônio vencido.
Assim como os demônios nos fazem guerra e nos procuram vencer por meio de nossa carne, assim nós havemos de fazer guerra aos demônios e vencê-los, mortificando-a e contradizendo-a.
Nota isto muito bem Santo Agostinho sobre aquelas palavras do Apóstolo (I Cor 9, 20): "Não luto eu contra o demônio como quem dá golpes no ar e briga com fantasmas, porque isso é inútil, senão que castigo e mortifico minha carne, e procuro trazê-la sujeita e rendida", diz o Santo:
"Pois castigai vossa carne, mortificai vossas paixões e más inclinações, e dessa maneira vencereis os demônios, porque dessa maneira nos ensina o Apóstolo a pelejar com eles".
Quando um capitão que está em fronteira de mouros vai ao rebate, põe na masmorra e deixa preso em ferros o mouro que tem cativo, para que não se levante contra ele e ajude aos inimigos; pois isso é o que nós havemos de fazer, sujeitando e mortificando nossa carne, para que não se faça do bando de nossos inimigos.
(Padre Alonso Rodríguez, S. J., Exercício de Perfeição e Virtudes Cristãs, parte 2, trat. I, cap. IV)
Nenhum comentário:
Postar um comentário