1.- Repetições úteis. Como todos os seres humanos normais sabem, e como aparentemente os reformadores litúrgicos não sabiam, a repetição é extremamente útil e importante no discurso humano, como demonstrado nas linhas rítmicas dos poetas, nas conversas íntimas dos amantes, nas visões elevadas dos místicos, nas arias dos compositores de ópera, e nos frequentes pedidos de crianças pequenas para ouvir a mesma história outra vez. Repetimos o que é agradável para aqueles que são amados por nós. O Rosário exemplifica essa prática, mas o mesmo acontece com a liturgia tradicional, sejam a Missa ou o Ofício Divino. As muitas repetições aqui reforçam, ampliam e dão expressão aos pensamentos e sentimentos do coração.
Foi um exercício cruel do racionalismo eliminar repetições supostamente “inúteis”, como os muitos beijos no altar, as muitas declarações de “Dominus vobiscum”, o duplo Confiteor, as nove vezes do Kyrie, os sinais da cruz, as múltiplas orações antes da comunhão, e as duas repetições tríplices de “Domine, non sum dignus.” Eu me pergunto se os responsáveis por esta deformação não traziam o pesaroso destino de serem crianças negligenciadas que não ouviram poesia ou repetidas histórias com frequência suficiente.
O único tipo de repetição que Nosso Senhor proíbe é a irracional ou a repetição manipuladora, quando se repete vocábulos sem a intenção consciente de alguma coisa, ou repete-se palavras como encantamentos que podem exercer poder sobre algum outro objeto (incluindo os deuses, na maneira tola que os pagãos pensavam deles). A piedade católica tradicional usa a repetição de uma maneira totalmente diferente, para a honra de Deus e o benefício da alma.
2.- O foco está nos mistérios, e não na atividade. O Rosário é o “Saltério de Nossa Senhora”: é, por assim dizer, os 150 salmos do homem pobre. Mas este homem pobre é cada um de nós, todos nós; nós somos pobres mendigos que se ajoelham diante do trono de Deus, buscando Sua misericórdia e bênção pelas mãos de Sua Mãe Santíssima. As orações do Rosário são elas próprias ricas além da medida, inesgotáveis, a fonte de uma vida de união orante com Jesus.
Algum tempo após o aparecimento inicial do Rosário, a meditação dos mistérios da vida de Jesus e Maria foi adicionada como uma estrutura para as dezenas. Observe como o Rosário nos faz desacelerar e concentrar a nossa atenção sobre os mistérios divinos, e não sobre o apostolado externo ou um ativismo frenético. Destina-se mais em ser do que em fazer. A Missa Tradicional em latim, também, é abençoadamente livre da estranha preocupação de nossa época com utilidade, resultados imediatos, e nova-evangelização-em-tudo. O Rosário e a Missa formam-nos profundamente, nutrem-nos e envolvem-nos nos mistérios de Nosso Senhor, por meio do qual somos salvos. Este é o pré-requisito para fazer alguma coisa para o Reino de Deus — e é a meta de qualquer trabalho que possamos fazer.
3.- O foco está no Senhor e Sua Mãe, e não nas pessoas. O Rosário, mesmo quando recitado em grupo, é ainda uma oração “vertical”: não está sobre o grupo, ou apanhado com ele, ou focado em ministrar às suas necessidades reais ou percebidas, ou na tentativa de convencer ou persuadir alguma resposta específica. Como a Missa, o Rosário de fato une as pessoas, ministra às nossas necessidades, e nos leva a obter respostas. Mas a sua atenção, o seu objetivo, toda a sua orientação, estão em outro lugar.
Talvez, este seja o único aspecto mais notável e louvável da Missa Tradicional: em todos os pontos, exceto no sermão, a Missa é manifestamente um ato de adoração dirigida a Deus Todo-Poderoso, Pai, Filho, e Espírito Santo, um exercício do sacerdócio de Cristo e o sacrifício de Seu Corpo e Sangue. Claramente não é um encontro social em que celebrante e congregação voltam-se uns para os outros e refrescos são servidos.
4.- Escola de disciplina. Embora não haja nada de errado em recitar o Rosário sentado, muitas pessoas rezam-no de joelhos. Isso é difícil para os joelhos e as costas; não é à toa que o ato de ajoelhar é considerado uma postura penitencial nas igrejas orientais, e que os católicos tradicionalmente se ajoelhem no sacramento da Penitência. O Rosário é uma oração que convida e, até certo ponto, exige, disciplina: disciplina do corpo, e ainda mais, disciplina da alma. Sempre que se distrai e se divaga, você tem que trazer a sua atenção de maneira gentil, mas, firmemente, de volta à oração. É uma oração de perseverança: você tem que ficar com ela, venha o que vier. Satanás certamente não quer que continuemos a rezar o Rosário. Pelo menos na minha experiência de vida, o Rosário não é uma oração que você “pega” de imediato; você tem que crescer dentro dela, com confiança nas promessas de Nossa Senhora.
A Missa Tradicional em latim é um verdadeiro campo de treinamento da disciplina espiritual. Em uma Missa baixa, é o costume, pelo menos nos Estados Unidos, ajoelha-se em quase todos os momentos, do início ao fim. Não posso dizer-lhe o quanto isso tem sido uma ajuda para mim, como preguiçoso que sou. Na Missa solene, também, há muitas genuflexões e toda a liturgia é mais longa — sem pressa aqui, e sim, Deus é mais importante do que qualquer outra coisa que você ou sua família poderiam estar fazendo neste momento, de modo que supera a sua impaciência. Se você tem um grande número de filhos, os desafios aumentam[1]. O Rosário e a procura pela Missa antiga – e recompensa — disciplina.
5.- Uso de sinais tangíveis, juntamente com a oração vocal e mental. Estou convencido de que uma das simples razões pela qual nós gostamos do Rosário é porque ele é um objeto físico: um conjunto de contas, agrupadas em padrões, com medalhas e um crucifixo. Os católicos deveriam gostar de coisas físicas, porque Deus as ama. Ele trouxe o mundo material à existência como um de seus modos de Se comunicar com a gente e uma das maneiras em que podemos nos comunicar com Ele.
Portanto, o Rosário não é apenas um monte de palavras (a maldição da verbosidade), nem é apenas um Monte Everest da oração mental (a maldição da devotio moderna que deu errado), mas uma tríade harmoniosa: as palavras repetidas, os mistérios ordenados, e as contas. Há algo para cada parte de nós — e, para ser honesto, isso significa que parte de nós, às vezes, se colocará no lugar do resto de nós. Você já reparou que há dias em que parece que seus dedos estão fazendo a oração muito mais do que os seus lábios ou a sua mente? Precisamos ser humildes o suficiente para sermos carregados por nossas próprias mãos.
A comparação com a Missa Tradicional em latim não é difícil encontrar. Está muito mais saturada com sinais físicos do sagrado, do início ao fim, dando-nos mais “apoios” para pendurar as nossas orações. Abençoadamente permite uma grande latitude para a meditação: você não está sendo constantemente esperado para fazer isso ou aquilo, dizer “todos juntos agora!” Há um silêncio para descansar, o canto para se expandir, um cerimonial para assistir, tempo e espaço para rezar, e, quando Deus nos favorece, uma conexão atemporal com Ele que nada mais poderia trazer. A antiga Missa não é muito cerebral ou detalhada, como se fosse uma palestra destinada a melhorar moralmente os fiéis (muitas vezes um esforço vão, mesmo na melhor das vezes). É um ato de adoração em que se pode dar a si mesmo, em que se pode encontrar Deus.
6.- Recebido como algo praticamente inalterado durante séculos. O Rosário tem sido o que é durante longo tempo e não nos atrevemos a brincar com ele.[2] Não sugerimos um “Rosário reformado” a partir do qual todas as “repetições inúteis” foram removidas. Nós não nos desfazemos de sua forma recebida de dentro para fora para torná-lo mais aceitável ou passível do homem moderno. Nós não nos desfazemos dele como um acréscimo medieval ou uma relíquia ultrapassada de crédula Mariolatria. Não; nós o mantemos, nós o estimamos, nós o preservamos, nós o repassamos inalterado para nossos filhos.
A lógica, a atitude, a espiritualidade é a mesma quando se trata da Santa Missa. Na sua forma clássica, o Rito Romano em Latim se desenvolve organicamente por 1.500 anos — com o seu desenvolvimento, diminuído nos últimos séculos porque tinha alcançado a perfeição da forma, perfeitamente proporcional à glorificação do Deus Trino e às necessidades da comunidade de culto. Temos humildemente o privilégio de receber este imenso tesouro. Nós o amamos e o repassaremos aos nossos filhos.
7.- Nossa Senhora é invocada, pelo nome, muitas vezes. Isto é obviamente verdadeiro no Rosário, o que torna esta devoção um corretivo saudável para o racionalismo protestante que reduziria a oração em um exclusivo endereçamento a Deus, ignorando Sua Mãe e todos os seus descendentes, os Santos, e, assim, insultando-O e pecando contra as Suas disposições providenciais.
De modo semelhante, a Missa Tradicional apropriadamente exalta Nossa Senhora, ao mencioná-La muitas vezes — nas orações imutáveis por si só, 10 ou 11 vezes, dependendo do dia. [3] Neste honrar frequente da Santíssima Theotokos, o Rito Romano mostra o seu parentesco com todas as outras liturgias cristãs autênticas, tais como a Divina Liturgia de São João Crisóstomo. Em contraste, os arquitetos da Missa Novus Ordo procuraram minimizar Nossa Senhora por razões “ecumênicas”. Seu Santo Nome, o terror dos demônios, e a consolação dos pecadores, é reduzido de 1 para 4 menções; na prática, na Missa diária, uma única menção somente.[4]
A liturgia tradicional, assim como o Rosário, não se cansam de recordar a memória e invocar a intercessão da toda-gloriosa Mãe de nosso Deus e Senhor, Jesus Cristo.
* * *
Talvez, parte da razão para a contínua popularidade do Rosário é que ele nutre a vida espiritual em muitas das formas que a Missa Tradicional em latim usa para fazê-lo (e ainda o faz, onde quer que exista). Isso também pode explicar o ajuste natural entre assistir a uma Missa baixa e rezar o Rosário. Embora rezar o Rosário durante a Missa pode não ser a forma ideal de participação interior na riqueza da sagrada liturgia, sabemos que a Igreja, no entanto, não proíbe ou desencoraja rezá-lo em uma Missa baixa, e estou simplesmente apontando que há um parentesco entre a oferta tranquila da oração pública da Igreja e a quietude da oração do terço de Nossa Senhora.
E isso é consolador. Pois, se eu estiver correto, a oração do Rosário está preparando um grande contingente de Católicos Marianos para redescobrir e retornarem à Missa antiga, tão profunda e puramente Mariana em sua espiritualidade.[5]
Salve, Rainha do Santíssimo Rosário! Salve, Nossa Senhora das Vitórias! Rogai por nós pecadores neste vale de lágrimas, e obtende de Vosso Filho a restauração almejada da grande e bela liturgia da Igreja Romana. Amém.
Notas
[1] Veja meu artigo “Ex ore infantium: Children and the Traditional Latin Mass” e os links fornecidos lá. Nota de Sensus fidei: Traduzido ao português em “Ex ore infantium”: Crianças e a Missa Tradicional em latim
[2] É claro, os mistérios luminosos são uma espécie de inovação, mas a ideia de usar mistérios alternativos da vida do Senhor remonta muitos séculos e é recomendado pelo próprio apóstolo do Rosário, São Luís Maria de Montfort Gringnion. Daí eu respeitosamente discordo com meus irmãos tradicionalistas que rejeitam esses mistérios e sugiro que eles procurem se familiarizar com a amplitude da tradição do Rosário. Isso não quer dizer, contudo, que os católicos devem adotar os Mistérios Luminosos; mesmo João Paulo II tendo-os apresentado como opcionais.
[3] A variação é causada pela diferença entre a Missa baixa e uma Missa solene. Aqui estão todos os lugares onde o Santo Nome de Maria é mencionado: (1-2) no Confiteor do sacerdote; (3-4) no Confiteor do servidor; (5) no Credo; (6) no “Suscipe, sancta Trinitas” do ofertório; (7) no Cânone Romano; (8) no “Libera nos”, após a oração do Senhor; (9-10) no Confiteor antes da comunhão; (11) na Salve Regina das orações leoninas depois da Missa; (12) na colecta após a Salve Regina.
[4] Na Missa Novus Ordo, o nome de Maria é mencionado (1) na Oração Eucarística, e, sempre que exigido pelas rubricas, (2) no Credo. (3-4) entram em jogo se o Confiteor opcional é utilizado, o que não é comum em Missas diárias.
[5] Algo parecido com isto, é claro, estava acontecendo de forma espontânea e orgânica nos Frades Franciscanos da Imaculada, até sua nova vitalidade ter sido brutalmente reprimida em nome da uniformismo pós-conciliar. Vemos um paralelo nos esforços nefastos feitos depois de o Concílio suprimir a devoção mariana. Ambas as formas de iconoclastia, a anti-litúrgica e a anti-Mariana, nascem do ódio de Satanás pela Encarnação.
Publicado originalmente: Rorate Caeli —Seven ways the Rosary and the Traditional Latin Mass are alike
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